Distúrbio tem como principal sintomas a dificuldade para lidar com números. Nesta edição do Enem, 337 pessoas com discalculia terão atendimento especializado para fazer a prova.

Beatriz Carvalho tem discalculia. Na foto, ela recebe o auxílio da professora Selene Di Martynes, especializada em transtornos de aprendizagem. / Foto: Arquivo pessoal

Beatriz Carvalho, de 17 anos, prestará o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no próximo domingo (11), quando resolverá questões de exatas. Ela não consegue calcular troco ao fazer compras, não sabe olhar as horas em um relógio de ponteiro, não faz cálculos mentalmente e não tem noção da diferença entre 3 km ou 300 metros, por exemplo.
 
Nenhuma dessas dificuldades é resultado de falta de capacidade ou de baixo interesse pelos números. Ela se dedica aos estudos e tira notas altas em disciplinas como história e geografia. A matemática é um obstáculo para Beatriz por causa de um transtorno de aprendizagem pouco conhecido: a discalculia. Em inglês, é conhecido também como “number blindness”, ou seja, “cegueira numérica”.


Para fazer o Enem, Beatriz terá direito a uma calculadora, a uma hora a mais para fazer a prova e a uma pessoa que lerá as questões para ela. Ao todo, 337 pessoas com discalculia terão atendimento especializado nesta edição do exame.


“Fiz o Enem como treineira no ano passado e esses recursos me ajudaram bastante. O ledor, infelizmente, não costuma saber o que é discalculia. Explico os sintomas e ele me auxilia a digitar os números corretamente na calculadora e não me deixa confundir um algarismo com outro”, diz Beatriz. Até na prova de geografia, o auxílio é útil – afinal, gráficos e mapas precisam ser interpretados.
 
O neurologista Antonio Carlos de Farias, do Hospital Pequeno Príncipe (PR), esclarece o que é o transtorno. “Esse distúrbio não depende da dedicação do aluno ou de sua inteligência. Ele afeta o neurodesenvolvimento do paciente e suas conexões cerebrais”, diz. “Os sintomas podem variar: incluem dificuldade em ler enunciados de problemas matemáticos, problemas de raciocínio e de orientação espacial”, completa.


Na infância, pode se manifestar pelo atraso em aprender a contar de 1 a 10, por exemplo, ou no desenvolvimento mais lento da motricidade. Segundo o neurologista, os mesmos circuitos cerebrais usados na matemática podem ter repercussão na coordenação motora fina, no ritmo e na leitura de partituras musicais.


Beatriz conta que, quando era pequena, já demonstrava sinais claros da discalculia. “Não engatinhei, porque tinha dificuldade na localização espacial; demorei para aprender a contar, não sabia amarrar o tênis”, diz. Posteriormente, na vida escolar, a questão se agravou. Ela não aprendia a fazer as quatro operações nem conseguia estimar o tempo necessário para alguma tarefa. Para somar 3 + 3, por exemplo, usava os lápis do estojo para contar os objetos.
Não chegou a ser reprovada, porque tinha boas notas de comportamento e apresentava bom desempenho em provas na área de humanas. Mas a dificuldade com os números e a falta do diagnóstico abalavam a autoestima de Beatriz.

Justamente por causa da ansiedade, sua mãe a levou para uma consulta ao psiquiatra. Foi quando ouviu do especialista, aos 15 anos, que todas as suas dificuldades tinham um motivo: a discalculia. Passou por avaliações clínicas que confirmaram o diagnóstico.

“Senti um alívio enorme. Vi vídeos na internet de outros pacientes com o transtorno e o que eles descreviam era literalmente a minha vida. Eles também iam mal nas aulas de música e de educação física. Tinham problemas de equilíbrio como eu. Não conseguiam lidar com os números, com as horas, com a localização”, explica Beatriz.
 

Como ser independente?
 
A discalculia não tem cura. Segundo o neurologista Antonio Carlos, o tratamento deve ser feito de acordo com as dificuldades mais acentuadas dos pacientes – fonoaudiólogos ou psicopedagogos podem ajudar a encontrar alternativas que aliviem os sintomas. Beatriz, desde que foi diagnosticada, tem aulas de reforço com a professora Selene Di Martynes, especializada em transtornos de aprendizagem.


Em sua rotina, a jovem encontrou formas de conviver com o transtorno e de ser independente. Ela é bolsista no Colégio Mopi, no Rio de Janeiro, onde recebe auxílio dos professores e pode resolver as questões de matemática em dupla com algum colega.
Pela casa, espalhou relógios digitais, até no banheiro. Eles ajudam a jovem a ter uma noção melhor da passagem do tempo. Na bolsa, não pode faltar a calculadora: ela é usada para calcular trocos, por exemplo.


O sonho da jovem é cursar licenciatura em história. Ela quer ser professora justamente por perceber, ao longo de sua trajetória, a importância do docente na vida dos estudantes que têm alguma dificuldade de aprendizagem. “Meus professores foram essenciais. Me passaram calma, pensamento crítico e elevaram minha autoestima”, conta. “Quero tornar a educação mais inclusiva.”
 

Atendimento especializados no Enem 2018, por tipo

Autismo - 774 inscritos
Baixa visão - 5.232
Cegueira - 787
Déficit de atenção - 2.408
Deficiência auditiva - 8.915
Deficiência física - 1.951
Deficiência intelectual (mental) - 7.188
Discalculia - 337
Dislexia - 1.418
Surdez - 1.444
Surdocegueira - 16
Visão monocular - 1.377