Usuários encontraram em mata no bairro Vila Cachoeirinha um lugar para morar.

Usuários relatam convívio e consequências do vício e psicóloga fala sobre tratamento
Usuários encontraram em mata no bairro Vila Cachoeirinha um lugar para morar. / Foto: Hedio Fazan/Dourados News

No ano de 2011, a prefeitura de Dourados deu início a construção da Via Parque, uma importante obra que recebeu pelo menos R$ 5,6 milhões de investimento e possuí 3.500 metros de extensão, que liga as regiões oeste ao sul da cidade. O projeto apresentava uma estrutura moderna, iluminada, com espaço pra ciclistas e prometia uma excelente paisagem, já que a via margeia áreas ambientais.

Essa bela paisagem também seria a solução para os casos de irregularidade na região, onde centenas de famílias haviam invadido e vivam nas áreas de preservação ambiental em situação precária, sofrendo com as enchentes e falta de estrutura. A construção da Via Parque marcou o processo de “desfavelamento” da região e a remoção dessas pessoas para habitações de programas sociais, como os residenciais Martin Cristaldo e Estrela Porã, por exemplo.

Passados 11 anos, essa área de preservação ambiental voltou a ser habitada por populares, desta vez pessoas que vivem, ou sobrevivem, em situação de rua. Foi lá que, há algumas semanas, o Dourados News encontrou usuários de drogas e álcool e que aceitaram contar suas histórias.

Segundo eles, cerca de 20 pessoas moram na “matinha do Cachoeirinha” - como é conhecido uma das regiões da via que margeia o bairro com o mesmo nome -, entretanto, quando chegamos muitos se esconderam e apenas nos observaram de longe. Desses, quatro homens foram nos receber e aceitaram conversar, pedindo apenas que levássemos pão, mortadela e refrigerante para matar a fome que apertava há alguns dias, e que muitas vezes é amenizada com o consumo de drogas.

Aliás, é a ‘nóia’ (termo que usam para se referir à pasta base), que os ajudam a passar pelas condições climáticas extremas e a fome. É também a nóia que os mantem vivendo ali, apensar de várias tentativas de sair.

Natural do estado de Tocantins, F.B., de 43 anos, é eletricista, pintor e trabalha com estrutura metálica. As três profissões já o levaram por vários Estados do país e o conhecimento está explicito em seu jeito intelectual de falar. Ele foi casado, mas o vício não deixou o relacionamento seguir em frente e, há três anos, ele e alguns familiares vieram para Dourados, mas para “não dar trabalho”, optou por sair de casa e construiu o seu barraco na mata, utilizando principalmente materiais que são jogados no córrego que atravessa o local e descartes de construção.

“Eu sempre falo que tem que evitar o primeiro beijo (utilizar a droga pela primeira vez), porque é um caminho sem volta. Eu já tentei sair, mas a recaída é muito forte. Então eu optei por ficar aqui e faço alguns bicos pra conseguir manter o vício, a droga me fez perder tudo, eu tinha uma vida antes disso, mas não consigo parar”, conta.

Enquanto esperava ansioso o lanche, o homem alto e muito magro revela que as poucas refeições que faz acontecem na maioria das vezes através das doações realizadas pelas igrejas e instituições, porém, afirma que antes do vício tinha uma rotina saudável e parecida com a da maioria das pessoas, com academia e muita musculação, chegando a pesar 111 kg.

Kamilla Golin, psicóloga e professora, afirma que a questão das drogas é muito complexa e precisa ser tratada como muito cuidado.
 
“A gente tem uma imagem que os usuários de drogas ou moradores de rua não tem família, uma profissão, estudo, o que aumenta o preconceito em relação a eles. Nas instituições em que atendemos podemos ver que essas pessoas têm histórias diversas e que chegaram até esse ponto por algum motivo, viram ali uma saída”, conta a psicóloga.

A profissional alertar que o uso de entorpecentes existe há muitos anos e que acontecem também com outras substâncias legalizadas.

“Café, remédio e cerveja, por exemplo, são várias substâncias que também causam dependência, mas não são encaradas como drogas. E existem drogas mais perigosas, que são as proibidas, e o que a gente precisa pensar é o que levou essa pessoa até essa situação. São várias falhas sociais, familiares e, possivelmente, individuais, que levam à pessoa a fazer o uso excessivo de drogas, e essas falhas vão aumentando conforme ela vai aumentando o abuso ou tendo mais dificuldade de socializar, por exemplo”.

R.V., 44 anos, é um dos diversos casos que começaram pelo consumo de bebida alcoólica, mas há 22 anos, além da cachaça é viciado em maconha e pasta base.

“Eu estou aqui hoje por causa das brigas na família e esse meu defeito que é o vício. Eu estava usando a bicicleta da minha irmã e emprestei pra um cidadão aí que sumiu com a bicicleta. O pessoal ficou achando que eu vendi para usar droga, aí minha mãe falou que aquilo era o limite e que eu precisava sair de casa, então vim pra cá”, conta.

Ele já tentou deixar o vício e passou sete anos em uma clínica de reabilitação, mas foram as mesmas “amizades” que o apresentaram para a droga que o levaram para a recaída.

“Uma vez caí na besteira de experimentar e pronto, já estava amarrado. Basta uma vez pra ficar como escravo dessa droga. Muitas vezes a gente deixa de comer ou beber água pra usar. Eu já fiquei sete anos internado pra parar de usar, mas quando saí as amizades me levaram de volta, até porque quando fica muito tempo sem usar, a vontade vem dobrada. Eu me arrependo muito de ter usado, isso aqui não é vida pra ninguém!”, conta.

De acordo com a psicóloga as drogas mais agressivas, como o crack e a cocaína afetam a pessoa desde o primeiro contato e muitos deles as usam para fugir de uma realidade que enfrentam.

“Existem vários tipos de drogas, umas são consumidas por uma classe de maior poder aquisitivo, outras por uma parcela mais pobre da população, outras de uso recreativo como o álcool, mas sempre que falamos de pessoas em situação de rua, elas geralmente vão para o consumo de crack e derivados, são drogas muito agressivas e de ação no sistema nervoso central que prejudicam a pessoa desde o primeiro uso e por conta disso fica cada vez mais difícil de uma pessoa estabelecer vínculos sociais”, disse Kamilla. 

Ainda segundo a psicóloga é necessário entender que a recaída faz parte do processo e isso tem que ser mostrado para os usuários, uma vez que muitos tentam sair, mas desistem após usar novamente.

“É igual na dieta, vocês está ali controlando a comida e hábitos, então um dia vai e come uma pizza. Você jogou toda a dieta fora? Não! Então vai começar a cuidar de novo e recomeçar o processo até chegar o momento que a recaída não vai mais existir. Por isso é importante tratar o abuso de drogas não só como o abuso de uma substância, mas como um problema social. O que levou essa pessoa ao uso de drogas? Provavelmente o que levou à recaída, então precisamos tratar todo o entorno. O abuso de substancias é um problema multifatorial, se tratamos só o indivíduo tratamos só um fator, e existem outros vários como fatores sociais, familiares e de políticas públicas que precisam ser tratados junto”, explica Kamilla.

AGRAVANTE
Outro ponto a se levar em consideração é a expansão de cidade e, consequentemente, da população, que contribui para o crescimento do abuso de drogas. Isso se dá como a quantidade de pessoas vindo para o Estado, é necessário uma atuação entenda e atenda essa demanda.

A posição geográfica da cidade facilita a entrada de drogas, devido à proximidade com o Paraguai, além disso, Dourados tem recebido muitos refugiadas que, ao chegar ilegalmente aqui não conseguem estabelecer uma vivencia social, arrumar um emprego formal ou conseguir lugar para morar, consequentemente acabam na marginalização.

Outro ponto como a crise econômica também afeta muitas pessoas que, para fugir da realidade, optam pelo consumo de drogas.

Dourados ainda tem a questão indígena, onde etnias diferentes são obrigadas a conviver em um espaço praticamente urbano, mas que não são encarados da mesma forma que o não-indígena, vivem em situação de vulnerabilidade social e desaldeados acabam vindo para a cidade e tendo como opção a rua ou áreas de invasão.

Com a falta de recursos para sobreviver e consequentemente manter o vício, muitos acabam apelando para a criminalidade, o que aumentam os problemas sociais a serem enfrentados na cidade.

Os usuários que moram na ‘mata do Cachoeirinha’, relatam que frequentemente a polícia vai até o local, derruba os barracos ou coisas do tipo, procurando indivíduos envolvidos em crimes.

“A polícia vem aí, mete o pé no barraco, toca a gente daqui, e a culpa é dos outros que ficam mais lá pra cima que fazem coisa errada por aí e sobra pra gente. Nem todo usuário é do mesmo jeito, nós aqui não fazemos coisas erradas, a gente só para aqui, cuida um do outro, e tenta sobreviver. No nosso caso, buscamos uns bicos pra sustentar esse vício e poder comer. A gente já não é bem visto e tem que ficar por aqui, então alguma coisa a gente tem que fazer para manter a dignidade. Procurar fazer o que é certo pra sobreviver.”, afirma R.V.

POSSÍVEIS SOLUÇÕES 
Kamilla Golin acredita que o abuso de drogas é multifatorial e que o tratamento também precisar ser, o que faz necessário que várias instituições se mobilizem. Além disso, o acesso à informação é um dos principais passos não só para o tratamento, mas para evitar o uso.

“Precisamos começar pela informação que é o mecanismo para as pessoas conhecerem os riscos, prejuízos e realidades que envolvem o abuso da droga. Muita gente não sabe que Dourados tem um CAPS ad (Centro de Atenção Psicossocial - álcool e drogas) ou que existe tratamento psicológico e psiquiátrico gratuito no SUS (Sistema Único de Saúde). Esse é um papel das políticas públicas como um todo”, disse.

Segundo a psicóloga, também é um dever da Assistência Social ir até essas pessoas, oferecer informação, ajuda e realizar o encaminhamento para as instituições competentes. Esse trabalho é chamado de ‘atuação em rede’, que é quando instituições de diferentes políticas públicas, como saúde, segurança e assistência social, atuam em conjunto.

“Eu acredito que a principal chave seja o investimento em educação, geração de emprego e uma assistência social que chegue até quem precisa, isso é fundamental para diminuir esses problemas”, finaliza.