Tinder: a “cardapialização” dos afetos?

Como um palco das mais diversas manifestações midiáticas contemporâneas, o mundo digital tem se apresentado como um ambiente tecnológico que abarca múltiplas facetas de uso e significados culturais. E em meio a uma potente repercussão de conteúdos e de holofotes apontados às supostas celebridades que surgem a cada dia nesses espaços digitais, a Internet é, sobretudo, um ambiente aberto para o nascimento de novos atores, novas ideias, novas plataformas, especialmente por conta do advento de tecnologias móveis que nos concedem a possibilidade de estarmos sempre conectados.



Na cena digital em que estamos inseridos hoje, o aplicativo Tinder ganha destaque e inquieta a reflexão desse artigo. O conceito do aplicativo faz com que pessoas se comuniquem e se conheçam por meio de imagens. O Tinder é fundamentalmente uma rede social digital móvel concebida em torno da fotografia e da geolocalização. Os usuários publicam algumas fotos de si mesmo nos seus respectivos perfis e, a partir daí, ficam disponíveis para os demais usuários do aplicativo. Você “brifa” por meio de características demográficas qual o seu desejo: conhecer homens ou mulheres? De qual idade? E em que raio de distância? Feito isso, surge na tela do nosso smartphone uma espécie de “cardápio” com fotos de outros usuários. É possível visualizar as fotos da pessoa, a qual distância ela está de você, além dos amigos e interesses em comum que ela busca no nosso Facebook (com a nossa autorização prévia, logicamente).


Feito isso, vai aparecendo em sua tela uma imensidão de rostos em que você vai clicando em curtir ou não curtir. Caso você curta determinada pessoa, e ela também curta você, pronto! O Tinder dá a opção de que se abra um chat entre os dois usuários. E a partir daí tudo pode acontecer. Mais que isso, vemos que essas ferramentas tornam possível uma comunicação em tempo real, criando um sentimento de simultaneidade e de imediatismo que transcende as barreiras de tempo e espaço. Nota-se como essa nova dinâmica midiática acelera as mudanças ocasionadas pela mobilidade virtual e uma enorme influência das tecnologias móveis na nossa vida cotidiana. Nas entrelinhas das (quase sempre) narcísicas e insinuantes fotos publicadas no Tinder, evidencia-se uma retórica norteada por um sentimento de “estou à disposição”, ou mesmo uma possível busca de um “amor à la carte”, e até mesmo um chope num final de tarde apenas. Por que não?

O sucesso desse tipo de iniciativa pode ser compreendido dentro do contexto cultural brasileiro, onde o corpo humano se apresenta como um verdadeiro capital físico, simbólico, econômico e social. A partir da argumentação da autora israelense Eva Illouz, que escreveu em 2007 o livro “Amor em Tempos de Capitalismo”, pode-se claramente compreender a recente valorização dessa perspectiva como sintoma de uma cultura que elege rituais para evitar a solidão a qualquer custo. Dessa forma, diversas estratégias de comportamento se tornam passíveis de monetização, instrumentalização e promoção pessoal, entre eles a empatia, a pré-disposição e o bem-querer implícitos às nossas amizades e namoros.



Norteada por uma lógica de otimizar, nossa sociedade passa a se perguntar como a intimidade, a amizade e o amor podem ser socialmente distribuídos e alocadas em prol de benefícios fundamentalmente tangíveis. Afinal, estarmos com alguém pode nos tornar benquistos, fomenta a ampliação de nossas redes sociais e, consequentemente, dos recursos que podemos acessar a partir delas. Mais que isso, o Tinder nos evidencia que a comunicação interpessoal e as relações passam a ser geridas por meio da lógica do custo-benefício. Afinal, vivemos na época do capitalismo afetivo, no qual os cálculos de custo-benefício norteados pelos discursos clássicos de marketing e branding passam a vigorar também no âmbito pessoal. E nesse regime de visibilidade hipertrofiada, a boa forma física assume importância chave como capital simbólico pessoal.

A vinculação dos bens culturais e midiáticos às identidades no Tinder é muito comum. Em boa parte das fotos, notam-se usuários em cenas de viagens para o exterior, estampando marcas de moda e, é claro, mostrando partes do corpo supostamente com uma atratividade estética. O Tinder nos mostra que estamos inseridos em um universo do hiperconsumo que traz uma multidão de benefícios, bem estar material, melhor saúde, informação e comunicação, e isso contribui para tornar possível uma maior autonomia dos indivíduos em suas ações cotidianas.

Afinal, as atividades mais elementares da vida cotidiana tornam-se problemas e causadoras de interrogações perpétuas, como os romances e nossos relacionamentos. Paralelo a essas constatações, deve-se atentar aqui que ao criar um perfil em um site de rede social digital, sobretudo em sites que privilegiam elementos imagéticos, como o Tinder, as pessoas passam a responder a atuar como se esse perfil fosse uma extensão sua, uma presença daquilo que constitui sua identidade. Esses perfis do Facebook, do Instagram e do Tinder, passam a ser como estandartes que representam as pessoas que os mantêm.

A busca do indivíduo por se destacar no ciberespaço como uma prerrogativa de autoafirmação diante dos outros é uma apropriação, na web, de características culturais já atreladas ao capitalismo afetivo e a uma sociedade hipermoderna cada vez mais urgente. Notam-se relações sociais cada vez mais complexas, baseadas em uma competição por ser mais notado, mais seguido e, principalmente, de conquistar uma tão almejada visibilidade, reputação ou até mesmo uma alma-gêmea (ou um “match”, como sugere o Tinder). Em rede, cada usuário desenvolve uma maneira de uso e de apropriação das redes que lhe é próprio. Cada um decide o que ver, consumir ou com quem quer conviver. Hábitos e usos funcionam como pistas das silhuetas subjetivas de cada usuário. Nesse sentido, percebem-se novas formas de se apresentar na cena midiática e construir potências simbólicas de corpos.

As redes sociais digitais, sobretudo o Tinder, encorajaram as pessoas a mostrarem identidades discursivas. E com isso desenvolve-se uma compreensão mais rica dos indivíduos e de seus papéis nesse ecossistema digital difuso, inquieto e complexo que estamos inseridos.

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