Uma vida de lutas e tragédia dentro da família serviram de inspiração para que ela se reinventasse depois dos 60 anos

Por "amor à quebrada", Socorro voltou para sala de aula e se formou em Direito
Conhecer os próprios direitos foi a maneira que Socorro encontrou para que a própria voz fosse ouvida / Foto: Kimberly Teodoro

Com a força da própria história no olhar e a postura ereta de quem não se curvou para as dificuldades da vida, Maria do Socorro Nunes de Matos, voltou para as salas de aula aos 62 anos depois de tragédia na família. Ela descobriu que a única maneira de ter a própria existência respeitada é conhecendo os próprios direitos. Hoje, bacharel em Direito, ela luta para que vozes da periferia, como a dela, sejam ouvidas.

Quando ficou cara a cara com um juiz pela primeira vez, em Campo Grande, Socorro tinha um curso técnico em Patologia Clínica, nunca havia lido a Constituição e toda a informação que tinha vinha de uma cartilha chamada “Conheça seus direitos”, que explica as leis de forma simples e direta para quem tem pouco entendimento. Com a coragem vinda de uma mãe que teve o filho preso sem flagrante ou mandado, Socorro entrou no fórum e anunciou à secretária que queria falar com o juiz. Com as palavras de uma mulher negra, pobre, ainda vestida em roupas do dia-a-dia, a ousadia do pedido pareceu loucura para quem observava.

“Ela me olhou de cima a baixo e disse que não era assim que funcionava, juízes não atendem a população dessa forma, para entrar ali, além da hora marcada, também é preciso um pedaço de papel com muitos títulos. Então, eu pedi que ele fizesse uma declaração por escrito explicando porque não iria me atender. Pouco tempo depois, ela me chamou e disse que seria atendida, mas na mesma situação que eu, vi outras mulheres, maioria negras e pobres, que com menos informação não tiveram a mesma oportunidade”, conta Socorro, que entendeu naquele momento que como advogada poderia fazer a diferença, não apenas na vida do filho, como também na de outras pessoas.

Militante pelos direitos da mulher, dos negros e dos moradores da periferia, Socorro é nordestina, nascida em Macau no Rio Grande do Norte, teve uma vida marcada pela miséria e pela dificuldade, que ensinaram lições valiosas para a resistência de quem não abandona a luta diária por igualdade.

Ela se lembra dos pais com orgulho e carinho, que na necessidade do sertão criaram com dignidade e nobreza os 11 filhos, uma qualidade que não tem relação alguma com bens materiais, dinheiro ou poder. Nem a mãe, nem o pai de Socorro tiveram estudo, ele trabalhava com pedreiro e a mãe como doméstica, em uma época que nem escola tinha na região.


Autodidata, o pai de Socorro tinha o hábito de ler almanaques para achar ali os conhecimentos sobre o mundo, que naquele tempo era do tamanho de Macau. As primeiras letras, ela e os irmãos aprenderam com a mãe, que sentava toda a noite com os filhos após o jantar e ensinava o “ABC” com toda a paciência. Depois, fez questão de mandar todos para a escola assim que os primeiros padres chegaram por lá, reunindo o povo e anunciando as aulas, que aconteciam em baixo dos pés de pitomba, árvore típica da região.

De herança daqueles dias ficou o valor da educação, os valores da família, da amizade e a humildade ao olhar o próximo e se colocar no lugar dele. Em Campo Grande, Maria do Socorro mora há 30 anos, cidade para onde veio para ficar mais perto de uma das irmãs e acabou construindo uma vida, se casou e teve 3 filhos e 3 netos, todos criados com dificuldade e enfrentando desde cedo as próprias batalhas, mas igualmente motivo de orgulho na própria individualidade.

Casada há 25 anos com também funcionário público da saúde, Agnaldo Valdonado, Socorro conta que ainda na época do namoro o que chamou a atenção dela para o futuro marido foi o envolvimente com os movimentos sindicais, causas sociais e o hábito de leitura, que encheu a casa de livros de história e sede de conhecimento. Juntos, os dois incentivam um ao outro a melhorar sempre e passam isso aos filhos e netos.

O diploma de bacharel em Direito veio em 2017, depois de 5 anos de dedicação, ela se formou sem pendências na universidade. Agora, se prepara para a prova da OAB no segundo semestre de 2019, para finalmente poder advogar pelos moradores das Moreninhas.

No futuro, depois da OAB ela pensa em construir na frente de casa um escritório, pequeno, mas onde os moradores locais se sintam confortáveis.

Para ela o próximo passo é unir a comunidade, promover rodas de conversa onde se debata história, direitos humanos e dignidade social. Ela quer provocar a conversa com os cerca de 22 mil habitantes da região para entender as necessidades de cada um.