Sob o pretexto de combater um “regime autoritário” e o “narcoterrorismo”, o presidente dos EUA sinaliza disposição de dobrar a aposta em temas cruciais da pauta global: transição energética, minerais críticos, terras raras e controle do narcotráfico.

As recentes declarações do presidente Donald Trump sobre a Venezuela reacenderam o debate sobre o papel dos Estados Unidos na América Latina e expuseram uma complexa partida de xadrez geopolítico que ultrapassa os limites da crise venezuelana e, propriamente, do continente americano.
O movimento, aparentemente centrado em Caracas, é, na realidade, uma jogada estratégica voltada à recomposição da influência americana no hemisfério ocidental, à contenção de potências rivais e à reconfiguração dos temas da agenda internacional, em especial, segurança, energia e transição verde.
Trump busca, com essa retórica agressiva, retomar o espírito da antiga Doutrina Monroe, a “América para os americanos”, formulada em 1823 pelo presidente James Monroe, que, em sua versão contemporânea, poderíamos chamar de Doutrina Trump. Ela reafirma o domínio norte-americano sobre o continente e tenta redesenhar os tabuleiros regionais em um momento em que a presença da China e da Rússia na América do Sul se intensifica.
Assim, os Estados Unidos miram na Venezuela, mas seus verdadeiro alvos são os líderes do BRICS e, sobretudo, o Brasil.
Venezuela como Cavalo de Troia
O reposicionamento estratégico em torno da Venezuela cumpre múltiplas funções. Ao tensionar o regime de Nicolás Maduro, Trump pressiona indiretamente o Brasil, principal potência militar e econômica da América do Sul, a se alinhar mais estreitamente aos Estados Unidos.
A ofensiva cria constrangimentos para Brasília em temas sensíveis: a questão ambiental, o controle do narcotráfico e o petróleo da Margem Equatorial, a relação com a Rússia (principal fornecedora de fertilizantes ao agronegócio brasileiro) e a crescente parceria comercial com a China, eixo vital para o equilíbrio da balança de pagamentos nacional (e que tem incomodado produtores de soja dos EUA por substituir as vendas de tais commodities daquele país em meio à crise das tarifas entre EUA e China).
O recado é direto: a América Latina continua sendo o “quintal estratégico” dos Estados Unidos. Nesse contexto, a Venezuela funciona como um Cavalo de Troia. Sob o pretexto de combater um “regime autoritário” e o “narcoterrorismo”, Trump sinaliza ao mundo sua disposição de dobrar a aposta em temas cruciais da pauta global: transição energética, minerais críticos, terras raras e controle do narcotráfico.
Em última instância, o alvo não é apenas Maduro, mas o eixo Brasil–Rússia–China, que desafia o domínio norte-americano em áreas-chave da economia mundial (substituição do dólar como moeda de troca mundial; controle sobre cadeias globais de energia, minérios, comércio, serviços e indústria). Ou seja, é um ataque indireto aos BRICS.
A estratégia militar de mínima exposição
Do ponto de vista militar, é improvável que os Estados Unidos optem por uma intervenção direta com forças convencionais em território venezuelano. O mais plausível é o emprego de operações encobertas da CIA (já reveladas por Trump) e de Forças Especiais, que atuam de maneira seletiva para desestabilizar o regime, em linha com as doutrinas de guerra de baixa intensidade. Trata-se de uma estratégia que se aproxima das lições de Sun Tzu, baseadas em derrotar o inimigo sem travar uma batalha direta, diferentemente das concepções clássicas de Clausewitz, que pressupõem confrontos totais. O objetivo estratégico não é a conquista de território, mas a queda do regime.
Alguns sinais dessa postura estão na demonstração de força no Mar do Caribe, onde uma frota norte-americana realiza patrulhas ostensivas próximas ao litoral venezuelano. São exercícios de dissuasão, comunicação estratégica e inteligência, típicos de operações de pressão psicológica.
Ao mesmo tempo, no plano interno, Trump utiliza esse discurso para fortalecer sua imagem de líder firme no combate ao narcotráfico, afirmando que cada embarcação abatida na região “salva milhares de vidas americanas”; que os EUA declararam guerra aos “Cartéis” e ao tráfico de Fentanil (cujos mecanismos de controle de importação de matéria prima e percursores químicos vindos da China são bastante débeis na América Latina).
É um modelo que, em teoria, tende a potencializar a projeção de poder e aumentar a dissuasão contra ameaças geopolíticas e econômicas.
Securitização do narcotráfico e o risco para o Brasil
Essa securitização da Segurança Pública e, especificamente, do narcotráfico, no sentido definido por Barry Buzan, representa um movimento discursivo em que um ator político eleva um problema doméstico — o tráfico de drogas — ao patamar de ameaça internacional. Ao propor classificar os narcotraficantes como narcoterroristas, Trump cria as bases jurídicas e morais para futuras intervenções extraterritoriais, o que é particularmente perigoso para o Brasil, já que abre precedentes para ações estrangeiras em território nacional sob o pretexto da segurança hemisférica ou global.
E não somente isso, mas, em um momento em que vários dados, muitos deles divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, têm mostrado a simbiose crescente entre economia formal e economia do crime (drogas e crimes ambientais, entre outros), a securitização da segurança pública também aumenta o risco de produtos e serviços financeiros desenhados para inclusão de cidadania digital (como o PIX e as FINTECH) passarem a ser objetos de sanções internacionais e de questionamentos sobre a utilização de tais canais para a lavagem de dinheiro.
Diante do aumento da presença do crime organizado de base faccional e/ou miliciana, o governo brasileiro, ciente desses riscos, tem se posicionado de forma cautelosa. O Secretário Nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, manifestou publicamente que o Brasil não adotará a nomenclatura de narcoterrorismo.
A Polícia Federal, por sua vez, tem reforçado sua presença na Ameripol, na Interpol e atuado para manter canais de cooperação internacional abertos no combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado, no indicativo de que o país tem ciência dos seus desafios e tenta enfrentá-los.
No atual cenário do xadrez geopolítico, essas manifestações do governo brasileiro são extremamente relevantes e precisam ser explicitadas, por maiores que sejam as críticas acerca da efetividade das políticas públicas de segurança do país, historicamente constrangidas pela arquitetura federativa e institucional da área. Isso faz com que prover segurança seja uma tarefa pouco coordenada e que envolve aproximadas 1.600 diferentes agências públicas (polícias federais, polícias estaduais, ministérios públicos, Receita Federal, COAF, agências reguladoras, sistema prisional etc.). Temos um enorme problema de coordenação federativa e republicana na segurança pública.
Ainda assim, o país tem fortalecido sua presença militar e policial na fronteira norte, em especial após as ameaças venezuelanas de reivindicar o território de Esequibo, na Guiana. A recente Operação Atlas, conduzida pelo Ministério da Defesa em outubro deste ano, foi a maior mobilização militar brasileira das últimas décadas — um claro sinal de que o país está preparado para reagir a qualquer escalada regional. E há iniciativas em várias unidades da Federação que têm conseguido bons resultados na redução de alguns índices de violência letal.
O poder americano em demonstração
A estratégia americana, portanto, não se restringe à Venezuela. Quando os Estados Unidos realizaram, por exemplo, o ataque de alta precisão às usinas de enriquecimento de urânio no Irã, o recado ultrapassava o Oriente Médio: era uma mensagem direta a Moscou e a Pequim sobre a superioridade tecnológica e o alcance militar norte-americano.
A lógica se repete agora no Caribe. Assim como as bombas atômicas lançadas sobre o Japão em 1945 foram, também, uma advertência à antiga União Soviética, as ameaças à Venezuela servem hoje como demonstração de poder dirigida aos novos competidores globais. A crise venezuelana não deve ser interpretada apenas como um conflito regional, ideológico ou “humanitário”, mas como um tabuleiro de guerra híbrida, em que se misturam discursos, sanções, operações secretas, demonstrações de força e uma imensa reserva de petróleo.
Trump joga em várias frentes: reforça sua liderança interna, projeta poder externo, reativa doutrinas históricas e reposiciona os Estados Unidos no centro do jogo hemisférico. No fim das contas, o recado é inequívoco: na América, quem manda são os norte-americanos. E é nesse tabuleiro, cada vez mais complexo, que o Brasil precisa definir cuidadosamente suas peças e suas jogadas, com o risco de levar um xeque-mate no complexo jogo das Relações Internacionais.
E, para concluir, na medida em que 2026 será um ano de eleições gerais, é importante que todos os espectros ideológicos tenham claro que os riscos de securitizar/militarizar as respostas contra as organizações criminosas são altos demais para o Estado Democrático, para a Economia e, até mesmo, para o futuro da nação. O foco precisa ser o de fortalecimento de mecanismos de coordenação, governança e cooperação subnacional e regional. Do contrário, o combate ao crime organizado poderá significar a perda da soberania brasileira e relegar o país à condição de eterno ator menor na cena global.
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