Como começar a descrever a extraordinária biologia do myxini, conhecido no Brasil como peixe-bruxa?
Assim como nós, eles são vertebrados. O problema é que não têm coluna vertebral. Contam com vários corações, e pelo menos duas vezes mais sangue em seus corpos do que outros peixes. Para completar, apesar de terem uma mandíbula 'pela metade', conseguem morder carnes duras.
A pele do peixe-bruxa é tão fina que, em teoria, deveria comprometer sua capacidade natatória. Como não têm escamas, o peixe pode absorver alimento através de sua pele, sem precisar usar a boca. E os animais conseguem transformar água em gosma.
Fóssil
Ou seja, o peixe-bruxa é diferente de muita coisa que vemos normalmente no reino animal. Ainda porque essa criatura pode, literalmente, dar nó em si próprio. Parecidos com enguias, os peixes-bruxas estão na parte mais baixa da árvore genealógica dos vertebrados, próximos de um "parente" - as lampreias.
Para alguns biólogos, o peixe-bruxa deveria até ser "rebaixado", por causa da ausência de espinha. Mas um estudo de 2010, baseado em análises de DNA, descartou a ideia. "A pesquisa mais atual sugere que peixes-bruxas são vertebrados que perderam as características do uso da coluna", diz Theodore Uyeno, da Universidade Estadual de Valdosta, no Estado americano da Geórgia.
Se o peixe uma vez teve uma estrutura óssea deste tipo, deve tê-la perdido há muito tempo. Em 1991, paleontólogos analisaram um fóssil de 300 milhões de anos, encontrado no Estado americano de Illinois, que se parecia bastante com um peixe-bruxa. Em termos de aparência externa, apesar da distância de tempo, o peixe não parece ter mudado.
Os peixes-bruxa normalmente vivem no fundo do mar. Receberam o apelido de "urubus marinhos" porque gostam de se alimentar de restos. Mas isso não deve ser confundido com migalhas. "Os peixes volta e meia são vistos se alimentado, por exemplo, de carcaças de baleias, por exemplo", explica Ueno.
Mordidas
Saber como exatamente esses peixes conseguem arrancar grandes nacos de carne dessas carcaças é o que mais interessa Uyeno e seu colega Andrew Clark.
A maioria dos animais faz assim: a mandíbula superior e inferior se posicionariam sobre a superfície, e os músculos movimentariam os dentes para que eles rasgassem a carne.
"Mais de 99% dos vertebrados possui mandíbulas opostas", diz Clark.
Mas o peixe-bruxa é uma exceção.
"Essas criaturas vagam pelo oceano com apenas uma arcada dentária superior. Como é que conseguem gerar uma mordida poderosa?", questiona.
Depois de muita observação, Uyeno e Clark acreditam ter descoberto como, e sua ideia também ajudou a explicar outros atributos do peixe-bruxa.
Eles argumentam que o peixe consegue morder porque se enrola para formar nós. Especialmente perto da cabeça. E essa formação possibilita um trabalho conjunto com a arcada superior para prender e espremer o alimento - o nó funciona como uma mandíbula inferior improvisada.
"Começamos a imaginar que outras características do peixe-bruxa poderiam ser adaptações para melhorar sua habilidade de fazer nós", conta Uyeno.
Em um estudo publicado no início do ano, ele especulou até que a ausência de espinha se deve a isso. O peixe-bruxa tem uma corda de cartilagem, uma notocorda, que deixa seu corpo mais flexível.
A pele frouxa pode ser ruim para nadar e pesquisadores dizem que ela tem o efeito de alguém nadando em um vestido de noiva, mas a flacidez é fundamental para evitar lesões na hora de dar nós.
Para compensar a frouxidão da pele, o peixe precisa de fluido para preencher a cavidade entre a pele e o corpo. Nada melhor do que sangue para essa tarefa. Mas esse sangue, por sua vez, faz com que corações extras sejam necessários, o que pode explicar a anatomia diferenciada dos órgão internos do peixe-bruxa.
"Eles são os vertebrados que mais sangue têm no planeta", diz Uyeno.
A necessidade dos nós explicaria também a ausência de escamas e habilidade de fabricar gosma. Sem escamas, o peixe pode iniciar o nó perto da cauda e deslizá-lo até a cabeça - a gosma serviria como lubrificante. Mas há cientistas , como Chris Glover, da Universidade Athabasca, em Alberta (Canadá), que chamam a atenção para outras utilidade da capacidade de dar nós. Em 2011, Glover e sua equipe mostraram que o peixe-bruxa pode absorver nutrientes diretamente pela pele, sem a necessidade de usar a boca.
"A falta de escamas poderia ser relacionada a essa forma passiva de alimentação", diz Glover.
Há também o argumento de que a gosma pode servir para ataques a outros peixes - há evidências de que o peixe-bruxa também caça. Mais especificamente para entupir as guelras da presa e matá-la.
Já a falta de espinha dorsal pode facilitar a criação de nós com o corpo, mas talvez isso não seja um pré-requisito para esse comportamento. Shanta Barley, da Universidade da Austrália Ocidental observou que espécies de moreias têm comportamento parecido como o do peixe-bruxa em termos de "enrolação", apesar de serem dotados de espinha.
"A perda da espinha (pelo peixe-bruxa) pode ter sido desenvolvida para dar mais capacidade de manobra na fuga de predadores", opina Barley.
Uyeno e Clarke têm pela frente bastante caminho para convencer seus colegas de que as características únicas do peixe-bruxa são adaptações para realizar os nós com o corpo.
Mas eles acham que a pesquisa pode levar a possíveis inspirações ao mundo da tecnologia. "Imagine uma corda de rapel que pudesse criar um nó de emergência", diz Uyeno.
Isso ainda é pura especulação. Mas se resultar em uma corda dessas, o peixe-bruxa pode ter ajudado a salvar vidas.
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