Mulher carrega no ventre gêmeas dicéfalas com chances mínimas de sobreviver após o parto; ela também corre risco de morrer.

Médico repudia decisões que impediram aborto de grávida de siameses
Pedido de aborto legal para Lorisete foi negado em quatro instâncias da Justiça. / Foto: Pixabay

O médico ginecologista Cristião Rosas, coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, repudiou veemente as decisões judiciais que impediram a merendeira Lorisete dos Santos , de 37 anos, natural de São Gonçalo (RS), grávida de gêmeas siamesas dicéfalas, de realizar um aborto legal . Dicefalia é uma anomalia rara de malformação caracterizada pela duplicação e separação total das estruturas faciais, craniais e do encéfalo, formando duas cabeças em um único indivíduo. Os bebês têm chances mínimas de sobreviver após o parto. Lorisete também corre risco de morrer.

Rosas explica que a má formação fetal é frequentemente associada ao desenvolvimento de outras patologias maternas. Uma delas é o acúmulo de líquido amniótico na placenta, o que causa desconforto respiratório e já foi diagnosticado em Lorisete. Ela também relata sentir muitas dores.

O ginecologista ressalta ainda que o parto de siameses dicéfalos é extremamente difícil, uma vez que a passagem é dificultada pelo formato dos bebês. No caso de uma cesárea, também haveria risco para Lorisete, pois a mulher já passou por outras duas intervenções cirúrgicas para parir. Por esse motivo, ela poderia sofrer com hemorragias, podendo ir à óbito.

'Eu fiquei muito impressionado com a pouca percepção do judiciário com a vida dessa mulher. É como se o que interessasse fosse a possibilidade de 0,1% de sobrevida dos bebês. Eu fico muito entristecido, imaginando o que essa senhora deve estar enfrentando, porque saúde é um direito constitucional', afirma Rosas.

O médico questiona se as autoridades teriam tido um olhar diferente para o processo se Lorisete tivesse outras condições socioecônomicas.

'Se essa gravidez fosse da esposa ou filha de qualquer um dos juízes que acompanhou o caso, talvez o olhar para esse sofrimento teria sido outro. É fácil decidir de qualquer jeito quando se trata de uma pessoa pobre, vulnerável e excluída socialmente', diz.

Por que foi preciso entrar com uma ação judicial para autorizar o aborto?

A legislação brasileira garante que o aborto pode ser realizado legalmente em três casos: quando o feto é fruto de um estupro, não apresenta encéfalo e calota craniana (condição conhecida como anencefalia) ou a gravidez representa risco à vida da gestante. As duas primeiras exceções são contempladas no Código Penal  desde 1940. A última foi incluída em pelo STF em 2012.

Se Lorisete corre risco de morrer, por que, então, ela precisou entrar com um processo que a autorizasse a abortar? Qual é a explicação jurídica para isso? Foram essas as perguntas que o iG perguntou ao defensor público Andrey Melo, que defende os interesses de Lorisete no processo. Segundo ele, no laudo médico, consta que a gravidez é de alto risco, mas que um aborto não seria necessário para salvar a vida da mulher.

'O laudo médico dava conta de duas questões: impossibilidade de vida extra-uterina [após o parto] dos fetos e gravidez de alto risco. Porém, os médicos não julgaram que o caso se enquadrava no aborto necessário do artigo 128, inciso 1º, do Código Penal, que é aquele realizado para salvar a vida da gestante', explicou.

Os processos

De acordo com a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que atua para garantir a realização do aborto de Lorisete, o procedimento foi negado em quatro instâncias da Justiça. Após ouvir dos médicos que a situação dos bebês era bastante delicada e que poderia acabar morrendo durante o parto, ela procurou a Defensoria, em 8 de setembro.

Quatro dias depois, no dia 12 daquele mês, a primeira ação pedindo a interrupção da gravidez, por risco à vida da paciente, já era movida no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). O pedido foi indeferido. O mesmo ocorreu na comarca de São Luiz Gonzaga, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O juiz Kabir Vidal Pimenta da Silva alegou que 'não há comprovação efetiva de risco iminente e concreto à vida da gestante', apesar de a defesa afirmar o contrário. Ele também embasou sua decisão em casos veiculados na imprensa nos quais médicos conseguiram realizar partos de gêmeos siameses e separá-los com sucesso.

Após a decisão, a Defensoria resolveram ir ao STF, mas receberam mais uma negativa. O relator, ministro André Mendonça, e os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar mendes votaram contrários ao pedido. O ministro Edson Fachin foi voto vencido.

No processo, a subprocuradora-geral da República, Maria Caetana Cintra Santos, escreveu um parecer no qual afirma que, analisados os exames apresentados, revela-se urgente a necessidade de interromper a gravidez: 'Não se está a desmerecer a vida intrauterina e o direito do nascituro. Porém, a eventual criminalização do aborto em casos como dos autos, em que as instâncias precedentes não analisaram o pleito, seja pela complexidade da matéria, seja por supressão das instâncias, acaba por violar diversos direitos fundamentais da mulher, em especial o seu direito à vida, exposto pela gravidez de risco, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade.'