Interesse pelo animal começa a preocupar: abates estariam fora de controle, avalia USP.

Jegues comprados por R$ 20 no Brasil rendem R$ 22 mil na China
Jegues são capturados do meio ambiente ou comprados de moradores da região. / Foto: Mariana Gameiro e Adroaldo Zanella

O Brasil tem regiões com culturas muito diferentes. Enquanto nas metrópoles quase não se veem animais livres, nos interiores eles podem circular tranquilamente. Na região Nordeste, além dos cães e gatos vira-latas, os jegues são vistos pelas estradas e terrenos. Alimentam-se de capim. Dormem sob as árvores. Às vezes, causam acidentes de trânsito.

Alguns são selvagens. Outros, semi-domesticados -- que é quando são usados esporadicamente como meio de transporte. Também existem os criados para ajudar efetivamente no dia a dia. Mas, a presença deles é tão comum que um jumento, mesmo treinado para servir como veículo de locomoção ou ferramenta para a agricultura, pode valer entre R$ 20 e R$ 30 em uma negociação.

Tão abundante e barato, o jumento chamou atenção dos chineses. Como descobriram, ninguém sabe. O que se sabe é que o interesse tem aumentado e muito. A ponto de preocupar ambientalistas. Entre 2010 e 2014, o Brasil abateu um mil jegues. Entre 2015 e 2019 foram 91,6 mil. Segundo um censo do IBGE, em 2013 existiam 900 mil deles. Já no ano passado a conta caiu para 400 mil.

Os abates aumentaram depois que a JBS arrendou um frigorífico em Amargosa, que fica a duas horas de carro de Salvador, na Bahia. Quem fechou o negócio foi um brasileiro em sociedade com 2 chineses. Adquiridos por micharias ou capturados do meio ambiente, esses animais entraram em uma linha de produção lucrativa. Por dia, quase 5 mil são abatidos, gerando mais ou menos US$ 200 milhões.

A carne pode ir para a China ou para o Vietnã. O couro é cuidadosamente embalado em caixas e levado para a próxima potência mundial, onde é transformado em uma gelatina usada para produzir ejiao. É um produto medicinal sem eficácia comprovada, porém, muito utilizado em chás ou receitas para tratar problemas como anemia, menstruação irregular, impotência sexual e distúrbios do sono.

O ejiao rende bastante dinheiro. Cada caixa pode custar R$ 750. Geralmente, cada peça de couro gera mais de 30 caixas. Ou seja, um animal comprado por R$ 20 aqui vale mais de R$ 22 mil por lá.

Riscos: sanitários e de extinção

O abate de equídeos, como jumentos, mulas e cavalos no Brasil é permitido conforme o decreto 9013, de 2017. Porém, a clandestinidade observada, tanto na forma de adquirir ou capturar os animais, como no modo que são abatidos, pode gerar problemas sanitários graves, como explicam os professores de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo (USP) Adroaldo Zanella e Mariana Gameiro, em um artigo publicado no Jornal da USP.

A Bahia concentra a maior parte dos abatedouros que já passaram por inspeção federal. Tudo improvisado, sem equipamentos adequados e treinamento de pessoal. São muitos riscos para os humanos e para outros animais. A aglomeração e o transporte, sem conhecimento da saúde deles, pode provocar doenças, além de distúrbios metabólicos que causam sofrimento.'

Outra preocupação é com a extinção. Os chineses já praticaram o mesmo tipo de negócio em outros países da Ásia e também da África, onde provocaram um desequilíbrio populacional, contam os pesquisadores. 'Mantido o ritmo atual de abate, a existência da espécie está ameaçada, pois a taxa de reprodução dos animais não acontece na mesma velocidade', concluem eles.

Caso chama atenção

A exploração do jumento brasileiro pelos chineses está chamando atenção não só de quem se preocupa com o bem estar animal ou dos pesquisadores científicos. O problema já estaria invadindo o campo político.

O prefeito de Amargosa (BA), Júlio Pinheiro (PT), tem se posicionado a favor da prática porque seria um 'dos setores que mais emprega na cidade, atrás só de uma fábrica de calçados e da própria prefeitura', disse à reportagem da BBC.

Além das manifestações de apoio, o prefeito entrou ainda com um processo na Justiça para liverar de vez os abates. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), apoia a ação, assim como o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL).