"Hospital não é lugar de sentir dor", afirmou obstetra antes de dispensar mulher em hospital de Três Lagoas. Momentos depois, deu à luz em casa

A 2ª Turma Recursal Mista do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul confirmou a condenação de um hospital vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e do município de Três Lagoas ao pagamento de indenização de R$ 30 mil por danos morais a uma gestante em decorrência de violência obstétrica.
No dia 25 de novembro de 2019, a mulher foi a um hospital de Três Lagoas em trabalho de parto, onde foi atendida por um médico obstetra. A mulher apresentava dor, sangramento, perda do tampão mucoso e contrações.
Segundo relatos, o médico se recusou a interná-la, afirmando que não estava em trabalho de parto, não tendo alcançado a dilatação necessária, e que deveria retornar para casa, pois, nos dizeres do profissional, “hospital não é lugar de sentir dor”.
Assim, cerca de duas horas após ser avaliada, a paciente recebeu alta hospitalar, sem nova checagem de seus sinais. Logo após sair do hospital, no entanto, ela deu à luz em sua residência, sem assistência médica, colocando em risco a saúde dela e do recém-nascido.
A mulher então ingressou com ação contra o hospital e o município requerendo indenização pelos danos morais sofridos.
O hospital alegou que só teria responsabilidade no caso de erro médico ou de falha na prestação de serviços, o que não ocorrera. Informou também que a requerente estava em pré-trabalho de parto e que sua internação precoce acarretaria em intervenções desnecessárias e danosas.
Já o município de Três Lagoas contestou afirmando que, mesmo diante de possível falha do SUS, apenas o hospital e o médico poderiam ser responsabilizados.
Julgamento
Em sentença da juíza Janine Rodrigues de Oliveira Trindade, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível e Criminal, foi destacada a gravidade da situação enfrentada pela autora, ao se considerar que não apenas houve falha no atendimento, mas que a conduta do médico configurou violência obstétrica, um tema que vem ganhando destaque no debate sobre os direitos das mulheres durante o parto.
“A violência obstétrica é uma violência de gênero, algo maior que o erro médico. Ela envolve o desrespeito a diversos direitos da mulher gestante, parturiente e em puerpério. A violação desses direitos pode afetar a integridade física ou psicológica da mulher. Ter a dor controlada por ocasião do trabalho de parto é um dos exemplos de direitos da mulher”, frisou a juíza.
A magistrada apontou que a autora não recebeu o devido suporte físico e emocional durante sua internação e que não houve a monitorização adequada de seu estado de saúde antes da alta hospitalar.
Para a julgadora, os elementos de prova, como o prontuário médico e a declaração da enfermeira, indicam que a autora sentia dores, mas não recebeu nenhum apoio individual, seja físico ou emocional, nem alívio para a dor por parte da unidade hospitalar.
Assim, a decisão também atribuiu responsabilidade solidária ao hospital e ao município de Três Lagoas, que contrata os serviços de saúde. A juíza ressaltou que o município deve assegurar que as unidades contratadas sigam as diretrizes de atendimento humanizado, um dever que não foi cumprido no caso em questão.
A indenização foi fixada em R$ 30.000,00, corrigida pelo IPCA e acrescida de juros de mora, em virtude do dano imaterial sofrido pela autora.
Recurso
O município recorreu da decisão para a 2ª Turma Recursal Mista do TJMS, novamente afirmando que a responsabilidade pelo atendimento é exclusiva do hospital e dos profissionais de saúde. Requereu, assim, a improcedência do pedido de indenização ou, subsidiariamente, a redução do valor por considerar excessivo.
A relatora do acórdão, juíza Eliane de Freitas Lima Vicente, ressaltou que a alegação de violência obstétrica atrai a aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, vigente no âmbito do Poder Judiciário.
“É imprescindível reconhecer que a mulher grávida, em particular, enfrenta um cenário de vulnerabilidade acrescida, consideradas aquelas pessoas que estão suscetíveis a desenvolver problemas de saúde devido à sua condição no momento do atendimento, necessitando de uma abordagem sensível e cuidadosa", descreveu.
"A falta de assistência no parto e o fato de ter a autora dado à luz ao seu filho em sua própria casa não só evidenciam uma falha institucional, mas, também, uma profunda desigualdade no tratamento das mulheres no sistema de saúde”, enfatizou a magistrada.
“Nesse sentido, entendo que o quantum fixado na sentença a título de danos morais – R$ 30.000,00 – se revela adequado e proporcional às circunstâncias do caso concreto, atendendo ao duplo caráter da compensação moral: reparar o sofrimento da vítima e atuar como fator pedagógico para evitar a repetição de condutas negligentes no atendimento à saúde, não se demonstrando qualquer exacerbado que exige sua diminuição, razão por que deve ser mantida”, concluiu.
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