Campanha para localizar a família não trouxe ninguém para o último adeus, mas Natália foi sepultada com afeto de 4 amigas.

Travesti é enterrada com carinho de 4 mulheres e vaidade jamais esquecida
A campanha nas redes sociais para localizar a família não trouxe ninguém para o último adeus, apenas quatro amigas. / Foto: Paulo Francis

Simples, cercada de quatro mulheres e um cuidado que contrastava com a revolta, a travesti que morreu no último domingo e aguardava alguém da família para ser enterrada, foi sepultada ontem, no Cemitério São Sebastião, em Campo Grande. A campanha nas redes sociais para localizar a família não trouxe ninguém para o último adeus, mas sobre o caixão, Natália dividia espaço com flores artificiais cor de rosa e maquiagem nova, vaidade que jamais será esquecida pelas quatro mulheres que estiveram ao seu lado nos últimos anos.

Quando a gente chega e pergunta se ali era o velório de Natália, a primeira resposta é em tom de revolta. “Olha, não acho que falar da Natália agora que ela está morta vai resolver. Quando ela estava precisando de ajuda, ninguém apareceu”, disse uma das mulheres, à espera do corpo.

De fato, não cabe a reportagem trazer de volta a vida digna que a travesti merecia, muito menos desmerecer a revolta de quem sabe bem como é viver em um país que, em números absolutos, mais registra assassinatos de travestis e transexuais por ano. Mas cobrir o velório de Natália, é também tentar mostrar, de maneira mais sensível, como ser transgênero por aqui é difícil.
 

Surpresas com a delicadeza no rosto da travesti, ao lado do caixão, elas comentaram a vaidade nunca esquecida. “Olha como ela está bonita, fizeram a sobrancelha dela”, disse uma das mulheres. “Ela amava se maquiar, sempre foi muito vaidosa, quando íamos na casa dela, em baixo da ponte, estava tudo sempre muito organizado”, lembra outra assistente social.

Natália morou anos em baixo de uma ponte na Avenida Ernesto Geisel. Usuária de drogas, também se prostituiu para manter o vício. Deu de cara com a violência e o abandono, mas quando foi atendida e amparada, sobreviveu longe das ruas por pouco tempo.

E não há porque julgar a recaída de Natália. Mesmo depois de uma chance para recomeçar, sabe-se que o problema voltou à tona quando ela teve contato com as ruas, sem laços afetivos, sem estrutura familiar, sem muito sentido na vida. “É a realidade de muitas travestis que são hostilizadas pela sociedade. Natália foi ajudada nesses últimos quatro anos, conseguimos internações, uma casa para ela morar, trabalhou de empregada doméstica, mas é uma realidade difícil e, tirá-la dessa vida, carece de compreensão e estrutura”, comenta Cris Steffany, uma das mais atuantes representantes da comunidade LGBT (Lésbicas, Gay, Bissexuais e Transgêneros) que completou o time de mulheres da despedida.
 
O velório durou só 20 minutos, seguido de uma oração e o pedido de paz à alma de Natália. O cortejo seguiu com o afeto das quatro mulheres e o olhar do motorista que acompanhava a equipe da Saúde.

Sem coroa de flores, música ou cerimônia, Natália foi enterrada em silêncio, mas não sozinha. As lágrimas das quatro mulheres provaram mais que o luto, a dor de perder a amiga para um mundo ainda injusto e cruel. 


Embora a travesti não tenha sido assassinada, ela esteve por 44 anos em risco constante de violência, sem uma legislação que a protegesse, excluída do mercado de trabalho, com enorme dificuldade para acessar serviços de saúde, hostilizada e violentada, frequentemente, com a incompreensão e a rejeição familiar. Talvez, a frequência desse quadro, fez Natália morrer muito, muito cedo.

A vida da travesti, começou assim. Nascida em Aquidauana, a jovem morou pouco tempo com os pais. Foi embora de casa cedo e nunca mais voltou. O que poucos sabem é que os vínculos foram quebrados há muito tempo, talvez, mais de duas décadas.

Nos últimos quatro anos, Natália foi acompanhada de perto pela equipe do Consultório na Rua, um projeto nacional do Ministério da Saúde, que leva assistência médica e social a população em situação de rua e abandono.

Por aqui, o projeto é desenvolvido e coordenado por uma equipe da Secretaria Municipal de Saúde, inclusive, três das quatro mulheres no enterro de Natália fazem parte do projeto há 6 anos.

Sem autorização para entrevista, elas não deram muitos detalhes sobre o projeto e nem a história da travesti, mas lembraram com carinho de Natália. Também não seguraram as lágrimas logo nos primeiros minutos da chegada do corpo.  Uma delas, tirou o próprio brinco e o colocou em Natália, para que fosse enterrada com o brilho semelhante ao que mantinha nos olhos.