Réus no processo do incêndio na boate Kiss podem depor em 2015
Familiares penduram cartazes na fachada da Kiss após limpeza do prédio. / Foto: Bruna Taschetto/RBS TV

A tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, completa dois anos na próxima terça-feira (27) sem que ninguém tenha sido condenado pelo incêndio que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridos. O principal processo em andamento (confira a situação de todos abaixo), o que trata dos homicídios, segue sem previsão de julgamento, mas pode ter etapas importantes em 2015. Entre elas uma possível reconstituição dentro da casa noturna e os depoimentos dos quatro acusados.

Respondem por homicídio doloso e tentativas de homicídios os sócios da boate Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão. O depoimento deles perante o juiz será a última etapa da fase de instrução do processo e vai preceder a decisão do magistrado se eles irão a júri (em caso de homicídio doloso) ou não (em caso de desclassificação para homicídio culposo, impronúncia ou absolvição).

De hoje até terça-feira (27), o G1 RS publica reportagens sobre os dois anos da tragédia na boate Kiss. A busca por punição aos responsáveis e como vivem familiares e sobreviventes estão entre os assuntos abordados. O incêndio de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas

Segundo a assessoria do Tribunal de Justiça, o juiz Ulysses Fonseca Louzada, responsável pelo caso, está de férias e não pode atender a reportagem. Em entrevista ao canal de TV do Judiciário, concedida em dezembro, o magistrado fez um balanço de todo o processo criminal e disse que não estabelece "nenhum prazo" para o depoimento dos réus. Mas pelo andamento do processo são grandes as chances disso ocorrer ainda em 2015.

"O interrogatório dos réus é o último ato. É quando eles já terão a leitura, a visão de tudo que foi colocado no processo. É o momento de oportunizar a eles de falarem, se eles quiserem. É um direito dado pela Constituição. Pode ser importante por se tratar de um momento em que falarão com a pessoa que vai emitir um juízo de certeza a respeito deles", explicou Louzada.

Os advogados de Elissandro, Jader Marques, e de Marcelo de Jesus do Santos, Omar Obregon, não foram localizados para comentar o caso até a publicação desta reportagem. O defensor de Luciano Bonilha Leão, Gilberto Weber, sustentou que ainda é "muito prematuro falar sobre interrogatório", mas que, em princípio, seu cliente "vai relatar a atividade que exercia na banda". Já o advogado de Mauro Hoffmann, Mário Cipriani, afirmou que muita informação ainda deve ser adquirada no processo antes dos depoimentos dos réus e garantiu que seu cliente vai exercer o direito de falar. "Não há dúvida de que o Mauro irá se pronunciar utilizando todos os meios possíveis. Ele tem muita informação para dar, muitos detalhes", declarou. 

O processo teve início em 3 de abril de 2013, quando o juiz aceitou as denúncias do Ministério Público. De lá para cá, a Justiça já tomou depoimentos de 144 sobreviventes arrolados como vítimas, de 16 testemunhas de acusação e de mais de 50 testemunhas de defesa. A expectativa era terminar essa fase em 2014, mas ainda faltam três depoimentos por carta precatória nos estados do Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso do Sul, que devem ser encerrados até o dia 3 de março.

Reconstituição

Quando essa fase for concluída, o juiz vai ouvir 24 peritos, entre os quais os responsáveis pelo laudo oficial sobre a tragédia na Kiss. Há ainda um pedido das defesas para que mais testemunhas sejam ouvidas, o que será analisado pelo magistrado. Após a conclusão instrução processual, ou seja, de oitiva de testemunhas, o juiz decidirá se haverá ou não a reconstituição da noite da tragédia.

"É uma análise que terá de ser feita depois. Será que vai ser necessário fazer uma reconstituição dos fatos? Essa é a pergunta que vou me fazer em março. Depois que eu colher todas as provas eu vou verificar, ouvindo os peritos, se há necessidade ou não. Por todos os sentidos. Sofrimento novamente, enfim. Isso tem que ser levado em consideração", ponderou o magistrado.

De fato, mexer no prédio onde funcionava a boate pode reabrir feridas que ainda não estavam cicatrizadas e fazer pais reviverem a dor pela morte dos filhos. Isso ficou evidenciado durante o procedimento de limpeza da casa noturna, realizado no final de dezembro. Muitos familiares acompanharam o trabalho dos peritos do lado de fora da tenda erguida para isolar a boate.

"Pessoalmente, não sou favorável à reconstituição. Como pai que perdeu uma filha, qualquer  coisa que relembre a tragédia é muito dolorido. A data de 27 de janeiro já é um pesadelo para a gente, imagina uma reconstituição. Eu sou favorável que se tenha um memorial ali para apagar esse marco da tragédia. Evito até passar naquela rua", diz Léo Becker, vice-presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).

O presidente do Sindicato dos Peritos Oficiais da Área Criminal do estado (Acrigs), Eduardo Lima Silva, acredita que a reconstituição do incêndio na Kiss não é tão relevante. Além de ser um procedimento complexo, pela quantidade de testemunhas envolvidas, não acrescentaria muitas provas ao processo, na visão dele.

"O objetivo de uma reconstituição é entender a dinâmica dos acontecimentos a partir do que as pessoas que vivenciaram eles estão dizendo. Cada testemunha vai dar a sua interpretação daquele momento. Nesse caso, a reconstituição em si não e tão relevante quanto o resultado dos laudos da perícia. A reconstituição é importante quando há  divergências, inclusive entre testemunhas. Não parece ser o caso da Kiss", avalia.

O andamento dos processos

Confira abaixo como estão os processos relacionados à tragédia na boate Kiss.

Justiça Estadual
Esfera criminal
Acusação: homicídio e tentativas de homicídio com dolo eventual
Réus: Elissandro Spohr (sócio da boate), Mauro Hoffmann (sócio da boate), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada Fandangueira) e Luciano Augusto Bonilha Leão (produtor da Gurizada Fandangueira).

O processo de maior repercussão e volume da Justiça gaúcha, já com mais de 12 mil páginas, está na fase de instrução, nas mãos do juiz Ulysses Fonseca Louzada, titular da 1ª Vara Criminal de Santa Maria. Os quatro réus respondem ao processo em liberdade desde 29 de maio de 2013. Eles foram presos nos dias seguintes ao incêndio, mas uma decisão do Tribunal de Justiça concedeu a eles liberdade provisória.

Os mais de 100 sobreviventes listados no processo como vítimas já foram ouvidos, assim como as 16 testemunhas de acusação e a maioria das 54 testemunhas de defesa. Faltam ainda três depoimentos, de pessoas que residem fora do Rio Grande do Sul. Duas pessoas foram indicadas pelo advogado de Kiko, Jader Marques. Entre elas está um especialista em poliuretano, material encontrado na espuma usada dentro da casa noturna.

Quando essa fase for encerrada, o que deve ocorrer em março, o juiz vai ouvir 24 peritos. Há ainda um pedido das defesas para que mais testemunhas sejam incluídas, o que será analisado pelo magistrado. Depois disso, Louzada decidirá se haverá ou não a reconstituição da noite da tragédia dentro da boate. A última etapa da instrução do processo será o interrogatório dos quatro réus.

Por fim, o juiz emitirá uma sentença. São quatro as opções possíveis: pronúncia (os réus vão a júri popular por homicídio doloso), impronúncia (o processo é encerrado por falta de materialidade dos crimes), desclassificação (os réus podem responder por homicídio culposo, caso em que serão julgados por um único juiz) ou absolvição sumária.

Justiça Estadual
Esfera criminal
Acusação: fraude processual
Réu: Gerson da Rosa Pereira (major do Corpo de Bombeiros)

Ainda na esfera criminal, o processo mais avançado tem a acusação de fraude processual contra o major dos bombeiros Gerson da Rosa Pereira, que após a tragédia incluiu documentos que não estavam junto ao PCCI da Kiss originalmente. As testemunhas e o réu já foram ouvidos. Falta apenas a manifestação do Ministério Público antes da sentença. Já o sargento Renan Severo Berleze, que respondia pelo mesmo crime, aceitou um acordo com a Justiça e teve o processo suspenso.

Justiça Estadual
Esfera criminal
Acusação: falsidade ideológica
Réus: Élton Cristiano Uroda (ex-sócio da Kiss), Volmir Astor Panzer (contador da boate), Elissandro Spohr (sócio da boate), Mauro Hoffmann (sócio da boate), Tiago Flores Mutti (ex-sócio da Kiss), Cíntia Flores Mutti (ex-sócio da Kiss), Alexandre Silva da Costa (ex-sócio da Kiss), Ângela Aurélia Callegaro (ex-sócio da Kiss), Eliseo Jorge Spohr (ex-sócio da Kiss), Marlene Teresinha Callegaro (ex-sócio da Kiss) e Jackson Heitor Panzer.

Respondiam originalmente a esse processo, por falso testemunho, Elton Cristiano Uroda, ex-sócio da boate, e Volmir Astor Panzer, contador. Em depoimento à Polícia Civil, eles disseram que Eliseo Spohr, pai de Elissandro, não era sócio da casa noturna. Porém, a polícia e o MP comprovaram o contrário.

No dia 5 de dezembro de 2014, a Promotoria de Santa Maria fez um aditamento à denúncia oferecida em abril de 2013. Além de mudar a acusação de falso testemunho para falsidade ideológica, o MP incluiu outros nove acusados, entre eles Elissandro e Mauro Hoffmann.

Segundo os promotores, em três oportunidades os acusados ocultaram a real composição societária da boate incluindo sócios de fachada, os chamados "laranjas", alterando a verdade sobre fato juridicamente relevante. Jackson Heitor Panzer foi acusado de mentir em inquérito policial. A Justiça ainda não acolheu as denúncias.

Justiça Estadual
Esfera criminal
Acusação: falsidade ideológica
Réus: Elissandro Callegaro Spohr, Tiago Flores Mutti, Santiago Mugica Mutti, Cíntia Flores Mutti, Élton Cristiano Uroda, Alexandre Silva da Costa, Eliseo Jorge Spohr, Adão José Fighera, Gládis das Chagas Guimarães, Valmir Rodrigues Cézar, Maria Rebeca Brites Acosta, Christian Weber, Marco Aurélio Ribas Guimarães, José Gilmar Chagas, José Carlos Santos de Oliveira, Lenir Maciel Flores Mossate, José Eliseu Campos, Itamaraju Soares Xavier, Marco Antônio Pereira Duarte, Mário César da Silva Dutra, Rodrigo de Moraes Capa, Kátia Daiane Martins Cabreira, Erick Albertani Pampuch, Renise Haesbaert Fernandes, Lothar Heinz Stoever Júnior, Luiz Felipe Ribas Niederauer, Tânia Elizabete Basso dos Santos, Volnei Trevisan, Enoílso Cocco, Felipe da Luz Ferreira, Samir Almeida Hajar, Diego Guerreiro Fontella, Dani Luíza Passoelo e Ana Carla Soares Bueno.

Uma nova denúncia feita pelo Ministério Público em dezembro de 2014 também apontou 34 pessoas responsabilizadas pelo crime de falsidade ideológica. A acusação foi baseada no inquérito que investigou uma fraude na "consulta popular", um documento encaminhado à prefeitura de Santa Maria para regularização da casa noturna em 2009.

Segundo o MP, os réus fraudaram esse documento, incluindo assinaturas de pessoas que não moravam a menos de 100 metros do estabelecimento, assinaturas em duplicidade e de pessoas que sequer existiam. Foram denunciadas sete pessoas ligadas à Kiss e outras 27 que assinaram o documento, apesar de não residirem na região da casa noturna.

Justiça Estadual
Esfera cível
Acusação: improbidade administrativa
Réus: Alex da Rocha Camillo (capitão dos bombeiros), Altair de Freitas Cunha (ex-comandante do 4º Comando dos Bombeiros), Daniel da Silva Adriano (bombeiro reservista) e Moisés da Silva Fuchs (ex-comandante do 4º Comando de Bombeiros)

Existem duas ações em andamento na esfera cível. Uma delas, movida pelo Ministério Público, busca a responsabilização de quatro bombeiros de Santa Maria por improbidade administrativa e está sob cuidados do juiz Rafael Pagnon Cunha, da 4ª Vara Cível. Segundo a denúncia, eles foram responsáveis pela implementação de um sistema de prevenção de incêndios que não evitou a tragédia e pode causar prejuízos ao Estado.

O processo está na fase inicial. Nem mesmo a instrução foi inciada. Segundo o magistrado, o Estado poderá pedir para que os trabalhos tramitem na Vara Especializada da Fazenda Pública. Ainda segundo o juiz, nem todos os réus foram citados, pois há dificuldade em encontrá-los.

A outra ação civil pública, esta coletiva, trata sobre a indenização aos familiares das vítimas do incêndio. É de autoria da Defensoria Pública e tramita na 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública, sob responsabilidade da juíza Eloisa Helena Hernandez. Os réus são: Angela Callegaro, Marlene Callegaro, Eliseo Spohr, Elissandro Spohr, Mauro Hoffmann, Santo Entretenimento, EJS Participações e Assessoria Empresarial, Novaportal Comércio de Autopeças, Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Santa Maria.

A magistrada determinou, no ano passado, o pagamento imediato das indenizações, mas os réus recorreram e a liminar foi revogada pelo Tribunal de Justiça. Os desembargadores da 10ª Câmara Cível entenderam que há necessidade de, primeiro, apontar os sujeitos lesados, o que somente acontecerá na liquidação de sentença em 1º grau.

Justiça Militar
Acusação: inobservância da lei, regulamento ou instrução
Réus: Gilson Martins Dias, Marcos Vinícius Lopes Bastide e Vagner Guimarães Coelho (soldados dos Corpo de Bombeiros), Renan Severo Berleze e Sérgio Roberto Oliveira de Andrades (sargentos do Corpo de Bombeiros)
Acusação: prevaricação
Réu: Moisés da Silva Fuchs (ex-comandante do 4º Comando de Bombeiros)
Acusação: inserir declaração falsa com fim de alterar a verdade em documento público.
Réus: Daniel da Silva Adriano (tenente-coronel da reserva) e Moisés Fuchs.

Foram parar na Justiça militar os processos que apuram as responsabilidades dos bombeiros na tragédia da Kiss. Respondem por inobservância da lei, regulamento ou instrução cinco bombeiros que foram responsáveis pela fiscalização da boate. Conforme o Inquérito Policial Militar (IPM), eles não teriam registrado os problemas apontados em inspeções feitas na casa noturna em 2011.

O tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs responde por prevaricação porque não aplicou sanções ao sargento Roberto Flávio da Silveira e Souza diante da comprovação que ele era gerente da Hidramix, empresa que fez obras na casa noturna. Roberto acabou sendo expulso da corporação por falsidade ideológica e exercício ilegal da profissão.

Ainda na Justiça Militar, respondem por inserir declaração falsa com a finalidade de alterar a verdade em documento público o capitão Alex da Rocha Camilo, o tenente-coronel Daniel da Silva Adriano e novamente o tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs.

Todas as testemunhas arroladas nestes processos já foram ouvidas e o interrogatório dos réus está previsto para ocorrer no início de fevereiro. Depois, os réus serão julgados por um plenário. A juíza responsável pelo caso é Viviane de Freitas Pereira.