Desempregado até dezembro passado, rapper de Atlanta viu a vida mudar com 'Old town road', que lidera as paradas há três meses

Quem é Lil Nas X, o jovem gay que mesclou as estéticas branca e rural do country com a negra e urbana do rap
Lil Nas X: híbrido de referências das estéticas country e hip-hop / Foto: Matt Winkelmeyer/Getty Images for Stagecoach/AFP

Por meio minuto, “Old town road” , canção que lidera as paradas americanas ininterruptamente desde 13 de abril, soa como qualquer outra balada country, guiada por um banjo tristonho. Eis que inesperadamente entra uma batida acelerada do trap e os vocais cantados à moda sertaneja viram versos irônicos e caricatos sobre chapéus de cowboy Gucci, calças apertadas nos glúteos e cavalos nas costas.

Foi com esse híbrido meio pastiche, meio sério, que mescla as estéticas branca e rural do country com a negra e urbana do rap, além de um domínio nato da linguagem de memes, que Lil Nas X (codinome artístico do americano Montero Lamar Hill, de 20 anos) deixou de ser um jovem desempregado de Atlanta (seu status até dezembro) e se transformou da noite para o dia no principal fenômeno pop de 2019, desbancando nas paradas astros como Madonna , Ed Sheeran, Justin Bieber e Taylor Swift.

Abaixo, traçamos parte do roteiro do sucesso de Lil Nas X, que além de peitar o conservadorismo do meio country, decidiu combater outros preconceitos ao anunciar publicamente que é gay no domingo , último dia do Mês do Orgulho LGBT .
 
"Old town road" - Lil Nas X

O grande sucesso comercial do primeiro semestre é fruto de um improvável sub-gênero: o country-rap. Lil Nas X desponta como seu "embaixador", e recrutou um ídolo country, Billy Ray Cyrus, para cacifar essa peculiar mistura. Já são mais de dez semanas no topo da Billboard.
 
Imagens de campo, animais e pôr do sol se materializam na imaginação enquanto ouvimos a belíssima música do lendário cantor americano. A entrada de instrumentos de cordas na segunda metade ajuda a encorpar uma canção que anseia por um pouco de luz na alma. Leia a crítica de "Western stars", novo disco de Springsteen.

Origem do hit

Artista independente, Lil Nas X transformava seu quarto e o closet da sua avó em estúdios caseiros, onde gravava e jogava raps na plataforma SoundCloud. O beat de “Old town road” foi criado pelo produtor holandês YoungKio, de 19 anos, a partir de um sample da faixa “34 ghosts IV”, do grupo Nine Inch Nails (curiosidade: até chupinhar a canção, ele nunca tinha ouvido a banda de Trent Reznor, creditado como compositor de “Old town road”).

Nas X e Kio sequer se conheciam em outubro, quando o rapper pegou o beat do canal do holandês no YouTube. A versão original, com 1m53s, era lançada no dia 2 de dezembro. “Eu ouvi a melodia no Halloween e ela conversou comigo. Sabia que precisava ter versos divertidos e uma estética country”, contou Nas X ao “New York Times”.

Viralização com memes

A habilidade de Lil Nas X de criar memes divertidos no Twitter e no Instagram é parte essencial do seu sucesso. Ele diz que trabalha nisso com tanto afinco quanto na criação de raps. Desde que a música saiu, o rapper publicou em suas redes uma série de vídeos e montagens para chamar a atenção dos seguidores.

Ainda restrita, a estratégia de divulgação ganhou força quando “Old town road” atingiu o influencer Michael Pelchat (@nicemichael). Com traje de cowboy, ele gravou um vídeo engraçado de 15s e postou para seus 123 mil seguidores na plataforma de vídeo TikTok (espécie de Snapchat, famoso nos EUA), em fevereiro. O clipe inocente inesperadamente viralizou e gerou uma série de versões de outros usuários. Era o começo do sucesso.

Remix contra a exclusão

Para fugir da forte concorrência do hip-hop, Lil Nas X categorizou “Old town road” como música country no SoundCloud. E foi assim que ela apareceu pela primeira vez na “Billboard”, alcançando a 19ª posição na parada country, dia 16 de março. Mas, em decisão polêmica, a revista decidiu excluir a canção das semanas seguintes, alegando ter se enganado: ela não “abraçava elementos suficientes da música country de hoje”.

Já contratado pela Columbia Records, braço da major Sony, Nas X respondeu com um remix da canção, agora com a participação de Billy Ray Cyrus, ídolo da música sulista e pai da cantora pop Miley. A versão saiu no dia 5 de abril e, na primeira semana, já liderava a “Hot 100”, ranking da “Billboard” que engloba todos os gêneros. Até agora, “Old town road — remix” não saiu de lá.

Country-rap?

Perguntado pelo “NYT” sobre como gosta de categorizar “Old town road”, Lil Nas X respondeu de prontidão: “country-trap”. Ele é o primeiro artista a fazer, sozinho, um híbrido dos dois gêneros, sendo assim um expoente do que pode ser uma nova cena.

“Mas se eu tivesse que escolher qual dos dois faz mais sentido, definitivamente seria country”, garantiu o jovem. Ele, porém, prefere não ver uma questão racial na decisão da “Billboard”: “acho que é mais por ser uma música diferente demais”.

Amigos ou inimigos?

Ainda em abril, o “New York Times” publicou uma reportagem dizendo que o sucesso de Lil Nas X reaqueceu um debate que já dura duas décadas, sobre como o fechado mercado do country se relaciona com o rap: “Por décadas, Nashville essencialmente enquadrou e comercializou a experiência da música rural como uma arte branca — desafiando assim as profundas raízes negras da música country. Então, quando um artista como Lil Nas X — que é negro, faz rap, é de Atlanta, e não tem nenhuma ligação com o mercado de música country — reivindica a estética rural, mesmo que de uma maneira parcialmente irônica, causa uma ruptura real”.

‘Black yeehaw agenda’

O timing também explica o sucesso de “Old town road”. Ela foi lançada em meio a um crescente debate no mercado da moda americano, batizado de “black yeehaw agenda”. Ele discute (e exalta) a apropriação por parte da cultura negra de elementos da estética cowboy, reforçando exatamente que a country music tem raízes sólidas nas tradições musicais afroamericanas. A música de Lil Nas X aparece como trilha perfeita para isso.

‘7 EP’

Aproveitando a exposição, Lil Nas X lançou, há uma semana, seu EP de estreia, “7EP” (Sony). Além das duas versões de “Old town road”, o registro conta com outras seis canções, com colaborações de Cardi B, Travis Barker (Blink-182) e Ryan Tedder.

‘C7osure’

Uma das faixas do EP ganhou especial atenção desde domingo, último dia de junho, Mês do Orgulho LGBT: Lil Nas X revelou nas redes sociais que os versos de “C7osure” falam de sua sexualidade como homem gay. “Alguns de vocês vão parar de me acompanhar por isso”, ponderou. Mas, desde então, o rapper tem recebido uma série de mensagens de apoio, com fãs prometendo sair em defesa dele caso a revelação o torne um alvo de discursos de ódio.

Números

As conquistas do rapper não param de crescer. A revista “New Yorker”, em perfil publicado na semana passada, crava que “Old town road” pode ser “o grande sucesso comercial da década”. É a canção de estreia que lidera o ranking “Hot 100” da Billboard por mais tempo no século XXI. Somadas, a versão original e a remix (com Billy Ray Cyrus) se aproximam das 800 milhões de reproduções no Spotify, além das 200 milhões de visualizações no clipe publicado no YouTube há um mês e meio.

Nada é muito sério no “7 EP” de Lil Nas X — e talvez aí mesmo é que esteja a sua grande qualidade. É muito evidente em sua concepção e realização a tentativa de não deixar esfriar o sucesso de “Old town road”, canção que inadvertidamente mexeu em vespeiros de racismo do mundo country. A estratégia: crie-se em tempo recorde uma coleção de canções para se somar às duas versões do hit — a original e a remix , com participação do astro country Billy Ray Cyrus — e, abracadabra!, eis o disco para soltar aos leões do streaming. Mas há maneiras e maneiras de executar essa operação fonográfica — e o rapper de Atlanta parece ter escolhido a mais divertida delas.

A mesma visão desencanada que levou “Old town road” a ter o inesperado êxito que teve está espalhada pelas outras cinco canções do EP. De uma certa forma, Lil Nas X segue as lições de Post Malone, estrela recente do rap que também desafiou as ortodoxias do estilo e acabou acertando em cheio as paradas: saque da manga uma melodia atraente, repita-a bastante, não perca muito tempo criando batidas muito elaboradas, não se alongue nas faixas e busque uma aproximação com outros gêneros musicais.

Com o auxílio de uma gravadora, principalmente no que se refere ao investimento em produtores de renome, Lil Nas X — MC com um nome tão genérico que chega a soar irônico — conseguiu fazer um disco com verniz profissional e espírito amador. Um disco sem a menor unidade sonora ou estilística mas que, de uma forma enviesada, casa perfeitamente com as artimanhas do streaming (que deram tão certo com “Old town road”) de ter faixas com estilos híbridos que possam emplacar em diferentes playlists.

“Panini”, por exemplo, teria tudo para passar batida no meio da enxurrada de faixas de trap lançadas toda semana nos Estados Unidos não fosse um pequeno/grande detalhe: um refrão que vai soar muito familiar para alguns, já que foi sacado de “In bloom”, sucesso do Nirvana do álbum “Nevermind” (de 1991, que o millenial Lil Nas X diz não ter ouvido até a hora de escolhê-la como citação ).

“Panini”, no entanto, soa como um típico rap diante de “F9mily (you and me)”, rock eletrônico com notas de punk produzido por Travis Barker, baterista do Blink-182. Ou então diante de “Bring you down”, produzida por Ryan Tedder (do grupo OneRepublic), que é, esta sim, a mais nirvanesca das faixas do “7 EP”. Já “C7osure (what you like)” tenta, com poucos recursos, emular o som de fina house music da dupla inglesa Disclosure — um esforço simpático, no fim das contas.

Cardi B, nome de maior peso do disco, deixa, por fim, sua marca em “Rodeo”, que pelo nome pode sugerir um “Old town road 2”, mas vai para o lado da surf music mariachi. É a barbada do EP de estreia de um artista, sem dúvida, diferente dos demais.