Há dois anos Ângelo viu a vida perder a cor aos poucos, mas aprender a falar sobre a dor mostrou novos caminhos.

Quando a morte parecia única saída, letra da filha em bilhete trouxe recomeço
Há dois anos, Ângelo Augusto dos Santos viu a vida perder a cor aos poucos, mas ao aprender a falar sobre a dor, passou a ver novos caminhos. / Foto: Kimberly Teodoro

Há dois anos, Ângelo Augusto dos Santos viu a vida perder a cor aos poucos. “Se você me perguntasse se havia uma saída para aquele sentimento, eu diria que não”, diz ao tentar colocar em palavras um sentimento acumulado ao longo dos meses. Na época, ainda sem o diagnóstico de depressão, foram duas tentativas de suicídio, dias escuros dos quais, apenas a ligação com a família, traduzida nas letras rabiscadas pela filha de cinco em um pedaço de papel e colocado na porta da geladeira foram capazes de afastar.

Hoje, as mesmas letras foram marcadas na pele, em traços simples de tinta preta, são quatro iniciais colocadas nas laterais da cruz que cobre o corte feito no pulso esquerdo. “O-Q-J-F”, são iniciais da pergunta “O que faria Jesus?”, do livro “Em seus passos, o que faria Jesus?” do autor Charles Sheldon, a mesma feita por Ângelo a si mesmo em todas as situações desde o dia em que resolveu se dar uma nova chance.

Do momento exato em que tomou a decisão de cometer suicídio, ele diz não ter recordações das sensações, foram longos dias incapaz de ver graça no mundo, estava “anestesiado” para qualquer dor física e nenhuma resposta para a pergunta crucial “Por que não?”.
No pulso, as iniciais da pergunta diária que Ãngelo faz a si mesmo: "O que faria Jesus?"

Ângelo conta que durante a tentativa, o livro que inspirou a tatuagem caiu da estante. Apesar de não se lembre exatamente como, foi a pausa depois da queda que o fez ir até a cozinha pegar um copo de água e se deparar com o bilhete escrito pela filha. “Foi quando entendi que colocando um ponto final na minha vida, encontraria a solução para os meus problemas. Foi quando decidi eternizar aquelas iniciais no meu braço e que seria uma pergunta que eu me faria para o resto da vida”.

Não saber lidar com decepções foi o “buraco negro” para Ângelo, que tinha grandes planos para si mesmo e para a própria carreira, considerando a estratégia infalível, ele diz não ter sido capaz de lidar consigo mesmo quando o “castelinho de areia ruiu”. Avaliando toda a trajetória até aqui, ele conta ter mergulhado na depressão por não aceitar o próprio fracasso. “Eu precisava dar certo”.

“Ninguém cresce sabendo que vai ser um fracasso. Tudo aquilo que você faz para se preparar na sua vida, é para ser alguém de sucesso. Quando você é criança, seu pai fala para você que quando você crescer, você vai ter um casamento estável, vai ser um bom pai, vai ser um bom marido, vai ter um bom emprego, vai ser feliz. O que ninguém te conta é que no caminho, você vai sofrer decepções”.

Religioso, ele vem de uma geração de pastores, sendo o quarto da família a trilhar o caminho que parece estar no sangue. Conhecido no meio evangélico, Ângelo já foi orientador no grupo de jovens e passou grande parte da vida se preparando para seguir os passos do avô, mas ao mesmo tempo em que se considera um homem de fé, a posição que tinha à frente da igreja criou um estereótipo em torno da própria imagem. 

Como pastor, muitas vezes ele esquecia também ser humano, passível de erros e sentimentos dolorosos. Em meio a tanta cobrança, “O que vão falar de mim? Como eu que aconselhei tantos jovens a procurar ajuda, vou dizer que estou com depressão? Como é possível que eu esteja com depressão?” Eram perguntas constantes em sua mente. “Por crescer e estudar para ser um pastor, tem muita coisa que precisou ser quebrada em mim, muitas barreiras foram quebradas na terapia para que eu conseguisse aceitar ter depressão e ser um potencial suicida que precisa de cuidado. Eu entendo hoje, que depressão não se cura só com oração”.

Falar no assunto já foi motivo para vergonha, mas hoje é a maneira encontrada por Ângelo para dar sentido a todo o sofrimento, “é para que eu possa ajudar pessoas a sair da depressão, a se libertar dessa bola escura que a aprisiona. Eu não tenho problema em mostrar, não tenho problema em contar a minha história. É como se fosse uma cicatriz de um machucado, de um momento em que me machuquei na vida, mas que trouxe uma lição.”

Aceitar o amor de quem está em volta e entender que, mesmo nos momentos mais escuros e solitários, você é merecedor dele, é um dos passos mais difíceis. E, principalmente ser capaz de se enxergar humano, aceitar os próprios erros e se colocar no papel de protagonista. Ao perceber isso, ngelo teve coragem de pedir ajuda pela primeira vez, a melhora foi junção do tratamento psiquiátrico, psicológico e espiritual, um acompanhamento constante que aos poucos devolve a ele a capacidade de acreditar e sobreviver a si mesmo.

Coragem para encarar verdades escondidas em si mesmo foi, não apenas o primeiro passo para a melhora, como também foi crucial no amadurecimento do homem de 28 anos, que ainda não se sentia pronto para os declínios do caminho. “Fazer terapia é confrontador, a psicóloga quer trazer o melhor de você. Eu era uma pessoa que não aceitava o erro como parte do percurso da vida, hoje eu entendo que você pode errar, que pode cair, mas que pode recomeçar. Eu era muito perfeccionista, me cobrava demais”.

Como ajudar? Para a psicóloga Priscila Espíndola, o suicídio ainda é um tema tabu, do qual a escolha até hoje tem sido não falar sobre, mas não trazer o assunto à tona não tem diminuído os índices. “Acredito que não falar, torna isso mais glamouroso, individualiza e trás um romantização em torno do tema. Precisamos aprender a abordar o assunto”.

A melhor maneira de tratar o assunto é encarar de frente, sem mitificar o ato. “Como a pessoa sai da tristeza e começa a pensar na morte como saída é um processo, longo e desgastante. Quando as pessoas entendem esse processo, elas se identificam mais com a possibilidade de mudança”.

Cada um tem o próprio caminho para construir uma vida melhor, não existem dores menores porque cada um sente o mundo da própria maneira. Mais do que dizer qualquer coisa, é importante saber ouvir e não tentar minimizar o sofrimento do outro. O que pessoas que lidam com a depressão diariamente precisam é falar sobre o que sentem e, isso por si só é difícil, o que torna ainda mais importante, que ao decidir falar sobre o assunto, essa pessoa se sinta acolhida e tenha apoio para procurar um profissional.

Em Campo Grande, é possível buscar ajuda em escolas-clínicas de psicologia, Caps e pelos telefones 141 e 188 CVV (Centro de Valorização da Vida), 190 da PM e 193 dos Bombeiros, para romper o silêncio.