O trágico cenário dos yanomamis, em Roraima, escancarou para o mundo como as gerações destes brasileiros nativos são tratadas pelo poder público.

Indígenas de MS relatam fome, falta de água potável e pedido de socorro negado
Sem fogão, gás e alimentação adequada, indígenas improvisam cozinhando no chão. / Foto: Marcelo Batarce

Invisíveis e esquecidos, são as palavras usadas pelos indígenas de Mato Grosso do Sul para definir como se sentem vivendo no Estado que concentra a segunda maior população dos povos originários do país. O trágico cenário dos yanomamis, em Roraima, escancarou para o mundo como as gerações destes brasileiros nativos são tratadas pelo poder público.

Apesar de Mato Grosso do Sul ter um agronegócio pujante, capaz de gerar R$ 19 bilhões do PIB (Produto Interno Bruto), os indígenas convivem com a fome e falta de água. Nas áreas de retomada a situação é crítica, com famílias morando embaixo de lonas, sem água potável, sem energia e com direitos constitucionais negados. O caso já ganhou repercussão nacional, após campanha do ex-banqueiro que esteve na comunidade, em 2021.

Bem perto de Dourados, cerca de 2 Km da cidade, cinco áreas de retomada surgiram ao entorno das aldeias Bororó e Jaguapiru. Ao todo, cerca de 200 famílias da etnia guarani kaiowá sobrevivem em condições de extrema pobreza. O número de indígenas nessas áreas aumentou nos últimos meses.

O líder da comunidade, Laurentino Garcia, disse que ficou muito triste e tocado com a realidade dos yanomamis, mas também revela que no território sul-mato-grossense, a situação também é muito preocupante.

“Aqui, a minoria recebe cesta do programa da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Eles não liberaram o cadastro, por se tratar de uma área de retomada. Mas eu acho que é um direito receber, porque tem criança, idosos, gestante passando fome. Ninguém morreu ainda por desnutrição, mas não temos água potável. É um poço manual para todo mundo”, afirma.

Ele já pediu ajuda para o Ministério Público Estadual, a Funai, o DSEI (Distritos Sanitários Especiais Indígenas), secretaria municipal dos povos indígenas, mas sempre foi negado. “Não temos agente de saúde. Já mandei pedido para todos os órgãos públicos que devem nos ajudar. Não podemos contar muito com os órgãos federais para atender as famílias. Queríamos ao menos a visita de um médico, uma vez por semana”, acrescentou Laurentino.

A indígena Joana Sarato, 63 anos, mora na retomada Taquaju, a 10 km de Guia Lopes da Laguna, revela situação mais precária ainda. Vale lembrar que milhares de pessoas do mundo inteiro passam pelo local, por se tratar do caminho para um dos destinos de ecoturismo mais conhecidos do país, Bonito.

“Tem dia que tem café, tem dia que não tem nem o pó, chá ou açúcar. Minha geladeira só tem água e um feijãozinho que tirei da lavoura. Só como carne se a gente consegue bicho do mato. Como tamanduá, cateto, jacaré. Sei que é errado, mas é o único jeito que tem. Água do açude, o fazendeiro não deixa a gente pegar, tem que trazer e coar pra tirar os girinos. A água do poço é suja, com terra”, revela.

No local, apenas quatro famílias resistem com dificuldades. “Criança não espera fome. Eu vou na cidade, porque ficamos dias sem comer, às vezes meses. Mas eles falam que não podem ajudar a gente. Fico com vergonha e volto pra trás. Aí dou mandioca frita com sal pras crianças comerem”, afirma.

Dona Joana disse que chegou a ir até Brasília (DF) pedir ajudar duas vezes. “Fui tentar ajuda para não sofrer mais desse jeito, para não fazer coisa feia. Eles jogam para o município. Mas o prefeito veio duas vezes aqui e disse que a aldeia não foi reconhecida ainda, por isso não pode ajudar a gente. Ai larguei mão de ir atrás dele. Parece que ele tem boca suja com nós”.

Ela sonha com água encanada, um chuveiro, um vaso no banheiro, o mínimo para viver com dignidade. Mas até para atendimento médico, a guarani kaiowá diz que enfreta dificuldades. “Tem que pegar ônibus daqui e ir lá na cidade consultar. Na volta tem que ficar pedindo carona mais de hora pra trazer de volta. Sorte que índio antigo sabe tudo de remédio. A gente fica tomando remédio de pau, mas já acabou a casca da árvore de tanto que já usamos. Aqui pega dor de estômago, dor de barriga, febre, dor de cabeça, diarreia. Para não acontecer isso, já tem reservado nossa dipirona”.

A reportagem entrou em contato com assessoria de imprensa da Funai e do DISEI e até o fechamento desta matéria não teve um retorno. Já o prefeito de Guia Lopes da Laguna, Jair Scapini (PSDB) informou que iria na manhã desta terça-feira (24) com uma equipe da Secretaria Municipal de Assistência Social ouvir os pedidos das famílias e saber o que poderia ajudar os indígenas, apesar do local ser uma 'invasão'. O espaço segue aberto para os demais órgãos federais.

Cozinha comunitária – O Comitê de Luta de Dourados tem auxiliado os indígenas da retomada com a questão da alimentação. Neste domingo (22) foi inaugurada a cozinha comunitária da comunidade, uma forma de garantir ao menos uma refeição para as famílias que moram em situação insalubre.

Um dos coordenadores do grupo, Marcelo Batarce, 49 anos, é professor universitário e explica que a ideia surgiu após constatar a falta do mínimo de assistência social.

Ele explica que as retomadas são reflexo da grande quantidade de indígenas que não cabem mais nas aldeias. “Por isso eles buscam mais áreas. A Jaguapiru e Bororó são anexas. É a aldeia mais populosa do Brasil. Onde tem mais indígenas por metro quadrado no país. Mas você entra na Jaguapiru e parece uma favela. É uma vila, com uma casa do lado da outra, tem lote sendo vendido, já tem não indígenas”, conta.

Com a relevância da causa e a combatividade dos indígenas, Marcelo mergulhou na realidade desconhecida da maioria da população. “A situação deles é tão crítica, que eles não têm praticamente mais nada a perder. Eles estão em uma situação tão vulnerável, que eles participam mais”.

A retomada fica ao lado da rodovia que liga a cidade à universidade. “A invisibilidade dessas pessoas para sociedade é tamanha, que eles moram na margem da BR, onde passam estudantes e inclusive professores que nem sabe que ali moram índios. Passam todo dia ali e não enxergam. São pastos, com moradias de basicamente lona e resto de construção”, acrescenta.

Ainda segundo o professor universitário, as famílias andam muito para conseguir pegar água do único poço que abastece o grupo, o banheiro é um buraco na terra, não há eletricidade e a comida é feita em fogo de chão.

“A gente presenciou várias vezes, gente sem comida nenhuma. Por isso, eles saem da aldeia e vão para a cidade pedir. Se não tivessem ao lado da cidade, com certeza eles estariam na mesma situação dos yanomamis. Quando tem carne, eles chamam de puchero. Que é o osso com um pouco de carne. Eles vivem de cesta básica, só que na retomada nem todo mundo recebe cesta básica, que é um quebra galho, e não tem data certa de enviar cesta”, acrescenta.

O comitê entendeu que precisava, no mínimo, dar uma assistência social para os indígenas. “Pouca gente ajuda. Agora estão fazendo campanhas para os yanomamis, porque todos ficaram tocados com a situação. Mas a mesma pessoa sabe que acontece uma coisa parecida do lado dela e não toca ela. Acredito que tem muita discriminação e preconceito ainda contra os povos indígenas”, desabafa Marcelo.

Com uma vaquinha de R$ 1 mil uma estrutura foi montada para servir como cozinha comunitária. A comida foi feita na casa do líder, um dos poucos barracos com fogão e gás. Com R$ 250 foi servido um almoço à base de arroz, salada e puchero para cerca de 40 pessoas. “Não conseguimos comprar água ou suco, mas eles ficaram extremamente felizes. Queremos fazer almoço ao menos uma vez na semana agora”.

Nas imagens é possível ver várias crianças recebendo a comida. “Por incrível que pareça, muitos não tem prato. Acabam se servindo em panelas. As crianças comem com a mão, compartilham uma única colher ou improvisam uma com pedaço de isopor. É uma realidade muito precária. Muitos não trabalham, outros trabalham, alguns recebem bolsa família, outros não, alguns fazem roça. Gente sem horizonte, sem ferramenta, não sabe falar direito português, não consegue trabalhar. Quem fala português tem uma coisa a mais”, finaliza Marcelo.