Quando soube que seu pai havia estuprado uma prima dela, de 4 anos, jornalista contou para sua família, mas acabou sendo excluída dela; veja depoimento de mexicana que rompeu silêncio e é vista por muitos como 'inimiga dos homens'.

Alba Calderón soube em 2016 que seu pai havia estuprado uma de suas primas quando ela tinha 4 anos de idade. Depois dessa revelação, a vida dessa jornalista mexicana de 35 anos nunca mais foi a mesma. / Foto: Ana Gabriela Rojas / BBC News Brasil

Alba Calderón soube em 2016 que seu pai havia estuprado uma de suas primas quando ela tinha 4 anos de idade. Depois dessa revelação, a vida dessa jornalista mexicana de 35 anos nunca mais foi a mesma.

Ela confrontou seu pai, mas ele negava e sua família acreditava nele. Por isso, pararam de falar com ela. No entanto, sua mãe conseguiu, mais tarde, fazê-lo confessar seus abusos. "Alba não está mentindo, seu pai é um estuprador", diz a mãe à BBC Mundo por telefone de Monterrey, no México, onde mora a família.

Calderón também soube que pelo menos duas outras meninas foram abusadas sexualmente por seu pai. E algumas lembranças a fazem pensar que ela também pode ter sido vítima dele. A BBC contatou seu pai, que se esquivou do assunto.

"Não lembro dessa situação, prefiro esquecer, espero que Alba se recupere e tenha uma vida melhor. Ela não quer falar comigo e se afastou de seus irmãos, não sei o que está procurando, a família sofreu muito, estamos todos separados", conta ele - que nunca foi indiciado porque crimes de pedofilia no Estado de Nueva León prescrevem em 10 anos - à BBC Mundo por telefone.

No México, casos de abuso sexual de menores são comuns. 9,4% das mulheres no México sofreram abuso sexual na infância, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre a Dinâmica das Relações de Famílias 2016, do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI): Em 20,1% desses casos, o algoz era um tio. Em 5,8%, o pai.

Esta é a história de Alba Calderón contada em primeira pessoa:

Uma prima me procurou para dizer que meu pai a estuprou quando ela tinha 4 anos de idade.

Era dezembro de 2016 e essa revelação mudou minha vida. Ela partiu meu coração e até agora vivo em um estado de pós-trauma. Era como se o mundo estivesse caindo em cima de mim.

Quando descobri, a primeira coisa que fiz foi ir a Monterrey, no norte do México, onde mora minha família.

Chamei minha mãe e meus irmãos para contar a eles. Então todos nós fomos juntos enfrentar meu pai. Ele negou a acusação, embora mais tarde tenha confessado a verdade à minha mãe.

Minha família acreditou nele e acabaram me expulsando da casa. Meus irmãos não falavam comigo até pouco tempo atrás, eles me excluíram.

Mais tarde, descobriram a verdade, mas decidiram ignorá-la. Agora, a única coisa que eles podem fazer é me ignorar, me repudiar.

Eu não paro de chorar. Naquele dia começou um processo muito doloroso que dura até hoje.

Me veio à memória um conflito que houve na minha família quando tinha 15 anos - e que a causa foi o fato de que outra de minhas primas também havia acusado meu pai de tê-la estuprado quando tinha 5 anos de idade.

Eles não acreditaram nela. Conversei com ela sobre esse abuso, que havia sido enterrado na família. Ela confirmou que meu pai, além de abusar dela, disse que ninguém acreditaria nela se contasse a verdade. Outra vizinha também o acusou de tocá-la quando era criança. Meu mundo caiu.

Para mim, até então, meu pai representava amor, honestidade. Então percebi que estava apenas fingindo. Surgiu uma dúvida. Eu queria saber se meu pai também havia abusado de mim. Mas durante um ano inteiro eu tive um bloqueio, não conseguia me lembrar de nada. Foi assim até dezembro de 2017, quando minha avó morreu. Foi um período de grande dor que passei em Monterrey, perto da minha família, e foi aí que as lembranças começaram a vir.

Primeiro lembrei-me de algo que pensei ser um pesadelo, tinha algo a ver com um elefante, e fiquei muito angustiada. Liguei para o irmão mais novo do meu pai e ele me disse que aconteciam coisas no quarto onde dormiam quando eram pequenos, que uma vez eles colocaram um pênis em sua boca enquanto ele dormia.

Naquele momento eu soube que o "pesadelo dos elefantes" era realmente uma lembrança: era meu pai se masturbando na minha frente. Também lembrei que uma noite ele ficou nu na minha cama. Quando eu perguntei, ele me disse que era porque eu estava com medo. Mas acho que ele tentou abusar de mim também. Tenho certeza de que ele não me via como uma criança que deveria amar e cuidar.

Crime prescrito

Tentei denunciar meu pai às autoridades, mas não foi possível porque o crime de pedofilia no Estado de Nuevo León prescreve em 10 anos. Já havia passado mais tempo. A única coisa que podia fazer era divulgar o caso publicamente. Embora muitos não quisessem saber a verdade, para mim não havia outra escolha. Faço isso mais como uma necessidade pessoal e um reconhecimento à minha história. Quero pensar que posso diminuir um pouco essa dor, saber que não sou cúmplice dessa vergonha.

Meu pai é um pedófilo que estuprou duas das minhas primas. Para piorar a situação, minha família me excluiu quando o acusei. É importante começarmos a falar sobre o que machuca e preocupa a nós, mulheres. É um primeiro passo. Para mim, foi um alívio. Além disso, eu não tinha outro jeito de encarar isso. Eu sou um jornalista que cobre essas questões. E isso me faz pensar que, se isso é tão difícil para mim, deve ser pior para as outras mulheres que nunca são ouvidas, aquelas que têm que chorar sozinhas.

A justiça ainda está longe.

Quem vai impedir que esse homem faça alguma coisa? Quem pode impedi-lo de abusar de outra garota de novo?

Ele é meu pai, mas ele é um homem que eu não conheço completamente. Eu não acredito nele.

Não posso negar que ainda tenho amor por ele.

Grande parte da dificuldade de lidar com essa situação tem sido lidar com meus sentimentos. Estou muito zangada com ele, mas ao mesmo tempo há uma parte de mim que o ama e não posso evitar isso. Eu não consigo separar o óleo da água.

Ao longo do processo de busca pela justiça, conhecendo outros casos de abuso sexual e acompanhando outras mulheres, descobri que nós, mulheres, valemos menos. Podem nos estuprar e matar, que nada acontece. As leis não estão a nosso favor, elas não impedem que isso aconteça novamente.

A polícia, o perito, os juízes, descartam sua palavra por você ser uma mulher.

Mas o que seria, para mim, a justiça? Primeiro, que meu pai reconhecesse o que fez. Depois, que fosse garantido, de alguma forma, que ele não fizesse isso de novo. Que reconhecesse a dimensão de seus atos, que assumisse a responsabilidade por eles e pela dor que causou. Mas como? Sua palavra não vale nada. Ele teria que ficar na cadeia pelo resto de seus dias.

'Refúgio no feminismo'

O feminismo tornou-se meu refúgio. Eu acho que, se eu não tivesse passado por esse processo difícil, eu não teria abraçado o movimento tão rapidamente.

Algumas pessoas me dizem que sou "inimiga dos homens" ou que estou traumatizada com o que aconteceu com meu pai. Mas a história da minha família faz parte de uma cultura misógina e sexista, na qual as mulheres são menos valorizadas.

Ter falado abertamente sobre os abusos do meu pai teve um custo muito alto para mim.

Quando procurei ajuda legal, a primeira coisa que me disseram foi: "você tem certeza do que quer fazer, destruir sua família?"

Aqueles que, como eu, fazem a denúncia, são atormentados e excluídos socialmente. É um método de repressão para obrigar todos a ficarem quietos. Porque se você não calar a boca, não será a vítima perfeita.

Quando uma mulher relata o assédio, começa um escárnio que não termina.

Ter sido excluída pela família me fez sofrer. Meus irmãos ainda não falam comigo e tenho um relacionamento difícil com minha mãe.

Também fui excluída de grupos de amigos e conhecidos.

Eu ainda não sei como lidar com muitas coisas. Eles pararam de me convidar para festas porque falava muito sobre o assunto. Eu me excluí de outros lugares, porque sinto que o machismo é reproduzido em todo lugar.

Mas, apesar de tudo, sempre preferirei saber a verdade. Eu prefiro mil vezes a verdade a continuar me fazendo de estúpida, continuar perpetuando esse doloroso sistema que faz muitas outras mulheres sofrerem.

Nesse processo em que fiquei sabendo dos abusos do meu pai, comecei a reconhecer a dor de outras mulheres.

Por exemplo, percebi que minha mãe e minha avó estavam envolvidas nessa dor insuportável sem poder reclamar.

Entendi que venho de uma família mulheres que foram usadas todas as suas vidas, como um objeto, como um serviço. Eu agora uso a força delas, seu exemplo e seu amor para sobreviver. Mas tenho esperança de estar mudando isso de alguma forma para outras que vierem.

Minha mãe não quis perceber o que estava acontecendo. Não se deu conta. Não sei exatamente o que aconteceu. Mas depois que vim a público sobre o caso publicamente, ela fez meu pai confessar a verdade. Foi então que se separou dele.

As pessoas me chamam de "feminazi" por estar disposta a denunciar. Mas eu não vou parar de falar sobre feminicídio, de denunciar abusadores. Todo mundo quer deixar isso para trás. Mas eu não. Não acabou, ainda está acontecendo. Milhares de meninas e mulheres continuam sendo abusadas. Precisamos lidar com disso.

Nesta sociedade, os homens usam o sexo como um ato de dominação das mulheres. É necessário dar nome às dores. É um processo muito difícil reconhecer um abuso. Ou ver o de outra mulher. É uma dor compartilhada.

Talvez eles não tenham estuprado você. Mas sua melhor amiga, sua mãe, sua irmã, sua avó ... Claro que você conhece alguém, não? Como não vai se magoar? Eu não vou parar de falar sobre isso. A coisa podre ainda está aqui, em todo lugar.