No legado de José estão árvores centenárias, plantadas na Avenida Bandeirantes quando nada havia por ali.

Filha sonha encontrar família do pai que fugiu da guerra em porão de navio
José nasceu em 1897 e desembarcou no Brasil em 1904 depois de quase um mês escondido no navio. / Foto: Kísie Ainoã

O temporal que atingiu Campo Grande no último domingo causou estragos pela cidade, mas ninguém imagina a dor que provocou no coração de Maria Osmar do Nascimento, de 73 anos, ao derrubar um jatobá na Avenida Bandeirantes. A árvore de 25 metros de altura era o que ficou do pai José Antônio Osmar, um sírio que fugiu da guerra em um porão de navio e por aqui plantou, além de muitas árvores, uma nova história para a família. Sem deixar pistas sobre o passado, hoje a filha caçula sonha em um dia encontrar os parentes do pai que ficaram na Síria.

José faleceu há 45 anos, dentro de casa, no bairro Amambaí, região onde ele plantou boa parte das árvores que ainda resistem entre a calçada e o asfalto. Algumas são centenárias, porque foram plantadas logo que o pai chegou ali, no tempo do portão de ferro que dividia a fazenda onde hoje está a Avenida Bandeirantes.

José era um homem sábio, mas sério e ressabiado diante do fogo cruzado que deixou para trás, explica a filha. "Ele passou quase um mês escondido no porão de um navio para fugir da guerra. Contava que só comia pão com banana, era o que tinha para comer”.

O pai chegou em Santos na companhia de um irmão, a única pessoa da família, mas que também já faleceu. Sem falar o português, os brasileiros não entendiam a pronúncia correta de nomes pessoais e da cidade onde nasceram, talvez por isso alguns dados estejam errados no cartão de identificação feito no Brasil em 1904. “Quando eles chegavam tinham que colocar um nome em português, imagino que era Youssef, uma das variantes árabes de José, mas ninguém sabe ao certo o nome verdadeiro dele”.

Maria lamenta por alguns minutos ser a filha caçula de 9 irmãos. Quando nasceu, o pai já estava muito debilitado após ter sofrido um AVC (Acidente Vascular Cerebral), aos 52 anos. “Eu tinha 2 anos de idade quando ele ficou doente, além do AVC ele teve Parkinson e os avanços foram muito rápidos. Quando passei a me entender como gente, resolvi questioná-lo sobre sua história, mas ele quase não falava. Meus irmãos mais velhos nunca perguntaram nada ao pai por respeito, mas hoje vejo que nosso pai ficou sem história”, diz a filha.

Além das árvores que ela admira, Maria guarda numa caixa antiga de costura os documentos originais do Brasil, ainda intactos. Mas a cidade que consta no documento, Talda, ela nunca encontrou. “Imagino que era uma ilha que nem deve existir mais. Ele também não explicava, parece que ele não queria muito contato com o passado, talvez por causa do sofrimento”, imagina.

Nos últimos anos de vida, Maria lembra que o pai chegou a receber uma carta da Síria. “Era uma mensagem sobre algo da família, mas nós não entendíamos árabe, somente ele. Meu pai acabou sumindo com a carta e nunca mais encontramos”.

José foi comerciante como grande parte dos sírios e libaneses que chegaram em Campo Grande por volta de 1900. Ajudou na construção da história da cidade, especialmente, a do bairro Amambaí. Construiu um casarão na Avenida Bandeirantes, no cruzamento com a Brilhante, na década de 1920 que hoje não existe mais, tudo virou comércio. Mas as árvores que resistem são a maior alegria da filha caçula que não abre mão de viver na região.

“Eu olho em volta e vejo um pouco do meu pai e da minha mãe. Lembro de um comércio que ele tinha nessa quadra, minha mãe ajudava no atendimento e ele ainda ia trabalhar de carroceiro, tinha até carteira de carroceiro naquele tempo”.

Apesar do jeito fechado, era querido por todos, garante Maria. “Por ser um homem muito trabalhador as pessoas admiravam. Muita gente fala que os sírios enriqueceram porque roubaram, mas ninguém lembra que eles chegaram só com uma mala sem falar o português e se dedicaram ao trabalho. Eu tenho muito orgulho do meu pai por causa disso”.

A primeira língua que aprendeu no Brasil foi o japonês, assim que chegou no porto de Santos, ele foi viver oito anos com japoneses na construção da estrada de ferro, no Paraná. Só após esse tempo ele veio para Campo Grande, onde casou-se e virou comerciante conhecido. “Meu pai era um homem muito bom, trabalhador, honesto, deixou muitos valores a mim e aos meus irmãos. Por isso meu sonho é saber pelo menos o nome verdadeiro dele, a cidade de onde veio, um primo, sei lá”, diz.

Por isso, os documentos continuam guardados e as fotos com legenda feitas à mão. “Deixo esses álbuns para que meus netos e bisnetos saibam um pouquinho da história da família, quem sabe um dia eles descubram pelo menos um pouquinho da história do seu José”.

Além dos documentos, pequenos binóculos continuam na caixa de recordações com fotografias que o pai fazia das árvores até quando caíam. “Ele amava essas árvores, era a riqueza que ele havia plantado e iria deixar na cidade. Para mim é o mesmo sentimento, uma riqueza que precisa ser cuidada para não cair tudo de uma vez”.

Do jatobá que caiu depois do temporal, ficou a madeira que agora será transformada em bancos para integrarem a história da família.