Segundo levantamento do jornal britânico The Guardian, pelo menos 6.500 homens perderam a vida entre 2011 e 2020.

Copa no Catar: ONGs e embaixadas denunciam mortes suspeitas e exploração de trabalhadores
Catar teve mais de 11 anos para organizar a Copa do Mundo de 2022. / Foto: ALI HAIDER/EFE/20-12-19

A Copa do Mundo da Fifa, que nesta edição será sediada no Catar, terá o pontapé inicial no próximo dia 21 de novembro, com a partida entre Senegal e Países Baixos. A exatos quatro meses da abertura de um dos maiores eventos esportivos, ONGs e embaixadas de países mundo afora questionam os milhares de mortes de trabalhadores envolvidos em obras para o Mundial.

Segundo levantamento do jornal britânico The Guardian, pelo menos 6.500 homens perderam a vida entre 2011 e 2020 em construções idealizadas para a Copa do Mundo. Todos esses trabalhadores são imigrantes, em sua maioria de países da Ásia, como Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka.

Grande parte das vezes, não foi feita autópsia nos corpos dos migrantes mortos, algo considerado necessário por ONGs internacionais. Segundo o documento In the Prime of Their Lives, divulgado pela Anistia Internacional, o governo do Catar rotineiramente emite atestados de óbito de trabalhadores sem a indicação da causa da morte ou com informações vagas, como “causa natural” ou "falha cardíaca".

Em sua maioria, os homens contratados para trabalhar no Catar têm por volta de 30 anos. A faixa etária desses trabalhadores não é considerada fator de risco para doenças cardíacas e, portanto, há uma possível divergência com as razões de mortes que constam em documentos oficiais.

Segundo a Anistia Internacional, “essas certificações — descritas por um importante patologista como 'sem sentido' — descartam a possibilidade de indenização a famílias enlutadas, muitas das quais já enfrentam dificuldades financeiras após perder seu principal sustento”.

O professor de relações internacionais da PUC-MG Vinicius Tavares disse, em entrevista ao R7, que o número de trabalhadores migrantes mortos pode ultrapassar a marca de 6.500 e destaca a dificuldade de órgãos independentes em confirmar esses óbitos.

“É muito difícil apurar esse número corretamente. Tenho a tendência a dizer que a situação é pior. É óbvio que o Catar vai querer dizer que o número é menor do que os dados oficiais estão apresentando. As ONGs e as embaixadas, por sua vez, não vão contabilizar as informações que elas não têm certeza. Há uma escassez de informações”, afirma Tavares.

Na opinião do professor, os trabalhadores do Catar sofrem com leis trabalhistas pouco rígidas, se comparadas às normas de países ocidentais. A situação dos estrangeiros é ainda pior, já que por estarem longe do país de origem sofrem uma exploração sem ter a quem recorrer.

“O Catar estaria aproveitando que essas pessoas estão distantes do seu país para explorar essa mão de obra, com certeza", comenta o professor da PUC-MG. “Não é só estar longe do país, mas você tem uma situação em que as legislações trabalhistas são deficitárias, débeis, fracas.”

Em dezembro de 2010, quando a Fifa anunciou o Catar como sede da Copa do Mundo de 2022, 1,8 milhão de pessoas moravam no país do Oriente Médio. Dez anos depois, a população do paraíso petrolífero aumentou mais do que 50%, alcançando 2,8 milhões de habitantes.

Das pessoas que viviam no Catar em 2020, 82% (2,3 milhões) eram estrangeiros, segundo o Ministério de Planejamento e Estatística do Desenvolvimento do país.

A chegada de trabalhadores estrangeiros ao Catar é facilitada pelo sistema kafala, tradicional nos países do Oriente Médio e classificado pela ONG Human Rights Watch como “o coração do problema dos trabalhadores migrantes”.

A kafala consiste, basicamente, em atrelar o visto de um trabalhador estrangeiro ao seu empregador, impedindo, entre outras coisas, a mudança de emprego. Essa relação cria uma grande dependência daqueles que são contratados, muitas vezes explorada pelas empresas.

Além disso, há cobrança de taxas para o recrutamento de estrangeiros — que ultrapassam os US$ 2.000, cerca de R$ 11 mil —, retenção de passaportes e distorção das funções ligadas ao trabalho, que são descobertas somente após o desembarque no Catar.

“O receituário é mais ou menos parecido: você tem casos de pessoas que tiveram que pagar milhares de dólares para trabalhar. Assim, você gera uma espécie de endividamento desse trabalhador”, explica Tavares. “Essa pessoa está em dívida, trabalha de graça durante vários dias, vários meses. Só então começa a ganhar alguma coisa”, ressalta o professor, destacando que essa prática é ilegal.

Em 2016, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, afirmou que a federação de futebol “não tem que salvar o mundo”, ao ser questionado sobre as condições precárias de trabalho de empregados em construções relacionadas ao Mundial.

"A Fifa tem que organizar o futebol, não tem que salvar o mundo, isso são os outros que têm de fazê-lo. A Fifa pode contribuir, e o fato de organizar uma Copa do Mundo em países onde, supostamente, há problemas, temas e assuntos que precisam ser olhados com mais cuidado também dá a esses países a possibilidade de progresso."

Depoimentos feitos à Human Rights Watch indicam uma série de abusos contra empregados que trabalham em instalações que darão suporte à Copa do Mundo, como hotéis e restaurantes.

O queniano Henry (assim identificado pela Human Rights Watch) pagou US$ 1.173, cerca de R$ 6.450, a um agente de recrutamento para garantir um emprego de oito horas por dia como encanador no Catar, com salário de US$ 329 por mês, cerca de R$ 1.800. Ele ainda receberia auxílio-alimentação, teria uma acomodação paga pelo empregador e ganharia por hora extra.

Ao chegar a Doha, capital do Catar, o queniano descobriu que não havia emprego algum, apesar de possuir a documentação para trabalhar no país. No segundo mês, o empregador disse que o salário dele não seria entregue por causa de um “depósito de segurança”.

Quando finalmente recebeu o primeiro pagamento, três meses após chegar ao país e trabalhando mais de 14 horas por dia em um hotel, Henry recebeu apenas US$ 228 — 82 dólares menos do que o prometido.

Assim como Henry, outros milhares de migrantes têm histórias parecidas no Catar e em outros países da região do Golfo Pérsico, como a Arábia Saudita.

“Um dos fatores que se colocam para que a Arábia Saudita produza um barril [de petróleo] de forma tão mais barata é exatamente a utilização de mão de obra, em alguns casos, até em condições análogas à escravidão”, comenta Tavares ao citar o exemplo de mais uma nação criticada por ONGs internacionais pelas condições de trabalho.

A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e outras oito organizações iniciaram em maio deste ano uma campanha para que a Fifa pague US$ 440 milhões (R$ 2,3 bilhões) a um fundo responsável por indenizar milhares de trabalhadores envolvidos nas obras da Copa do Mundo.

“Em 2010, quando a Fifa deu ao Catar o direito de sediar a Copa do Mundo, estavam bem documentados os abusos trabalhistas e a exploração abundante nesse país. Os direitos aos trabalhadores migrantes, que formam cerca de 95% da força de trabalho do Catar, eram severamente limitados pelo sistema kafala de patrocínio do país e minado pelos esforços pobres das leis trabalhistas”, destaca o grupo de organizações.

As instituições ainda ressaltam que a Fifa estima uma receita de US$ 6 bilhões (R$ 32 bilhões) com a Copa do Mundo de 2022, o que torna os US$ 440 milhões exigidos uma “pequena porcentagem”.

Apesar desse movimento internacional pela indenização dos trabalhadores da Copa do Mundo do Catar, Tavares não acredita que um acordo entre vítimas, ONGs e a Fifa seja alcançado.

“Como é que a gente pode argumentar que esses mais de 6.000 trabalhadores valem esse dinheiro? Como que você vai pagar a esses familiares? Enfim, acho que é uma situação muito complexa e que a Fifa precisar avaliar”, conclui Tavares.

O R7 tentou contato com a Fifa e o Comitê Organizador da Copa do Mundo do Catar, mas não recebeu nenhuma resposta até a publicação desta matéria.