A vítima de 38 anos tinha hematomas pelos braços, pernas e na cabeça. Relatou que vinha sendo agredida há três dias pelo marido.

B.O sobre violência doméstica
O medo que o marido despertava veio à tona diante do escrivão, na hora do registro da denúncia. / Foto: Reprodução

“Vou ligar para os meus amigos da polícia e daqui a pouco eu vou saber onde ela está”. A frase reproduzida pela advogada Carla Carvalho revela a “influência” de um marido que descobriu, minutos após a denúncia de violência doméstica feita pela esposa contra ele, onde e com quem a vítima estava.

O registro da ocorrência foi feito, na quarta-feira da semana passado, dia 22 de setembro, na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), em Campo Grande. A vítima de 38 anos tinha hematomas pelos braços, pernas e na cabeça. Relatou que vinha sendo agredida há três dias pelo marido.

As pancadas na cabeça foram tão fortes que a vítima dizia que não conseguia nem lavar os cabelos de tanta dor. O medo que o marido despertava veio à tona diante do escrivão, na hora do registro da denúncia.

Apavorada, foi até a Deam acompanhada de advogadas e relutou para registrar a denúncia. “Ela vinha sofrendo agressões da parte do marido desde domingo. Começaram agressões verbais que depois foram para físicas. Ela relata que era ameaçada de morte se saísse de casa ou se abrisse a boca”, descreve a advogada.

“Quando ela começou a relatar para o escrivão, ela falava assim: ‘ele vai entrar aqui, ele tem influência, ele tem muitos amigos na polícia, ele vai entrar aqui e vai atirar'”, conta a advogada. De resposta, a vítima ouviu que poderia ficar tranquila, que ele não entraria ali e que ela estava segura.

Ameaças

Segundo a advogada da vítima, era recorrente a fala do autor das agressões para “calar” a esposa. “Ele sempre usava desses amigos da polícia dizendo: ‘se você me denunciar eu vou descobrir, tenho muitos amigos na polícia’. Eu até perguntei se ela nunca tentou ligar de um telefone público para a polícia, e ela disse que tinha medo de ligar porque ele dizia que daria para descobrir por câmeras de comércio ao redor”, explica a advogada.

O casal está junto há 18 anos, tem uma filha de 11 anos. As agressões teriam piorado há três meses, quando, segundo a vítima, a situação financeira da família melhorou. “Ela diz que ele sempre foi muito nervoso, grosseiro, mas que as agressões físicas começaram depois que eles melhoraram de vida”, completa Carla.

Em episódios anteriores, ele chegou a colocar um revólver na boca da esposa e ameaçou dizendo que ela só sairia de casa morta. Ela passou por exame de corpo de delito, como parte da apuração. A delegada responsável, Maíra Pacheco Machado, disse que - para não atrapalhar as investigações e obediência ao sigilo desse tipo de caso - não falaria à imprensa.

Denúncia

Na quarta-feira, a vítima foi até a Deam, por volta das 20, e enquanto registrava a denúncia, o marido seguia ligando para ela e todos os familiares, conta a defensora. Até que uma pessoa que estava junto com a mulher atendeu ao telefonema.

“Ele perguntou onde a esposa estava e essa pessoa disse que só sabia que ela tinha saído para fazer uma denúncia. Foi quando ele falou: ‘vou ligar para os meus amigos da polícia e daqui a pouco eu vou saber onde ela está’. Minutos depois ele já sabia onde ela estava, o teor do boletim de ocorrência e que ela estava acompanhada de duas advogadas”, fala Carla.

Revoltadas com o vazamento da denúncia, as advogadas procuraram a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Campo Grande. “Como que um servidor público solta uma informação dessa para o próprio agressor? Essa é a nossa indignação. Nós acreditamos que quando isso acontece inibe outras mulheres de denunciar, porque a vítima já tem medo e isso só ajuda a piorar. Gostaria que os órgãos competentes tomassem providências de procurar por onde vazou essa informação”, questiona Carla.

A OAB enviou ofício à Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) pedindo providências quanto ao vazamento do teor da denúncia. A Polícia Civil informou que o caso começou a ser apurado pela Deam assim que a advogada fez a denúncia. Segundo informado, a Corregedoria-Geral da Polícia Civil vai instaurar o procedimento administrativo para apuração do vazamento.

O sistema de registros policiais permite que os acessos sejam auditados, para quem consultou as informações do boletim de ocorrência.

“Nosso grito é para que se tome uma atitude, coisas desse tipo não podem acontecer. Todo o processo que envolve família é segredo de justiça, principalmente caso de denúncia de agressão por violência doméstica que não pode ser vazado para o agressor. Imagina, no calor da emoção, ele tendo acesso a essa informação, se a vítima sai da delegacia, provavelmente ela estaria morta”, afirma a advogada.

O vazamento do teor da denúncia caracteriza violação de sigilo funcional, sujeito a pena de seis meses a dois anos de detenção se o fato não constitui crime mais grave.