Maria das Neves, de 55 anos, conseguiu o certificado de conclusão do ensino médio em janeiro deste ano após ser aprovada no Encceja, depois de quatro tentativas de conseguir a nota via Enem.

A babá que aprendeu a ler sozinha e hoje faz faculdade de pedagogia
Maria das Neves cresceu na zona rural da Paraíba, longe de escolas e outros serviços básicos, como água e eletricidade, e aprendeu a ler sozinha aos 17 anos / Foto: Fabio Tito/G1

Todos os anos, cerca de 280 mil pessoas se matriculam na graduação em pedagogia no Brasil. Em 2019, uma delas é Maria das Neves, uma babá de 55 anos que só começou a estudar aos 45 e, no mês passado, finalmente conquistou o sonho de concluir o ensino médio. Agora, ela traça um novo plano, que ainda não está totalmente definido: ou trabalhará como professora do ensino infantil, ou com o ensino de jovens e adultos (EJA), onde poderá servir de inspiração.

"Eu tinha um sonho de entrar na escola e estudar, mas chegar à faculdade era um sonho grande demais pra mim. Eu achava que era impossível", disse Maria das Neves ao G1, dias antes de começar o curso de pedagogia.
 
No caso de Maria das Neves, que em 2019 virou caloura universitária do curso de pedagogia na FMU, em São Paulo, a trajetória até o ingresso no ensino superior levou dez anos e passou por diversos percalços, incluindo quatro tentativas de conseguir o certificado por meio do Enem. No entanto, ela contou com dois recursos que, segundo os dados mais recentes, estão cada vez mais escassos: tempo livre para estudar e um curso para jovens e adultos perto de casa ou do trabalho.

'Adultos sem diploma'
 
A história de Maria integra a série de reportagens "Adultos sem diploma", na qual o G1 apresenta dados exclusivos sobre o Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos (Encceja) que mostram que, dois anos depois que o governo federal decidiu retomar a aplicação do Encceja do ensino médio, em vez de usar o Enem para esse fim, a taxa de candidatos que fizeram todas as provas na mesma edição e conseguiram nota suficiente em todas elas para conseguir a certificação subiu de 14% para 36%.

As reportagens também analisaram os microdados históricos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Censo da Educação Básica, e mostram que, se todos os 5,8 milhões de participantes do Enem 2016 necessitassem da nota mínima exigida para conseguirem o diploma do ensino médio, 69,8% teriam sido "reprovados".

Além disso, embora o total de escolas tenha crescido 12% entre 2009 e 2018, o número de escolas que oferecem EJA do ensino fundamental caiu 34%.

'Será que eu desisto?'
 
Neves também representa um ponto fora da curva porque, na primeira vez em que fez o Enem, conseguiu pontuação suficiente para tirar o certificado. Mas, como não havia preenchido o campo do formulário de inscrição sobre a solicitação da certificação, ela não poderia aproveitar as notas.

No ano seguinte, ela conseguiu novamente notas suficientes no exame, com exceção da prova de matemática, em que ficou apenas 2 pontos abaixo da pontuação mínima para pedir a certificação.

Na terceira tentativa via Enem, em 2015, Neves ficou abaixo da nota mínima exigida. Já em 2016, ela chegou a se inscrever, mas, por causa de complicações em uma cirurgia, precisou ficar cerca de um mês internada e acabou faltado ao exame.

"Eu fiquei mais triste no primeiro ano, que eu já tinha conseguido a nota e não consegui o certificado", relembra ela, em entrevista ao G1. "Pra mim foi muito triste, me isolei, chorei bastante... Dei uma sumida."

Neves disse que, depois da primeira tentativa frustrada, ela chegou a pensar em desistir do sonho.

"No primeiro ano eu fiquei assim: 'Será que eu desisto?' No ano seguinte eu falei: 'Não, não vou desistir. isso não tá nos meus planos, eu vou continuar'", contou Maria das Neves.
 
O primeiro retrato
 
As histórias da babá sobre sua infância só podem ser recontadas de memória. Natural de Desterro, na Paraíba, Neves viu uma máquina fotográfica pela primeira vez apenas na adolescência, quando se mudou para Brasília. Foi lá também que ela leu seu primeiro livro: "Olhai os lírios do campo", um romance do escritor gaúcho Érico Veríssimo publicado em 1938.

Na época, ela tinha 17 anos e já havia migrado do Nordeste para a Capital Federal, onde passou a morar com um dos irmãos mais velhos e a mulher dele.

"Ela tinha uma estante de livros e foi o primeiro livro que eu peguei. Eu ainda não sabia ler bem, fiquei um ano inteiro para tentar decifrar ele, tentando descobrir as palavras, letras, algumas coisas. Depois de um ano eu já estava mais ou menos. Aí eu li [o livro] de verdade."

Infância sem escola
 
A Desterro que ela deixou para trás na década de 1980 era um pequeno município na fronteira da Paraíba com Pernambuco. Hoje, tem pouco mais de 8 mil moradores.

Lá, além da falta de livros, a casa de um quarto e duas salas que a família de Neves mantinha na zona rural também não tinha piso, banheiro, geladeira, televisão, poço artesiano ou luz elétrica.

O pai e a mãe trabalhavam na roça familiar plantando milho e feijão e, quando sobrava tempo, trabalhavam na roça alheia para complementar o sustento da família.

A zona urbana da cidade ficava a muitas horas de caminhada. "Nas poucas vezes que eu fui a gente tinha que sair de casa de madrugada, caminhava muito, uma viagem muito cansativa. A pé, porque não tinha carro nem tinha estrada pra carro", lembra.

O mesmo desafio era necessário para encontrar água. "A gente saía pra muito longe quando ia atrás de água. Ficava a noite toda na fila sentado para pegar um pouquinho de água. Quem chegava primeiro conseguia." A água em geral era suficiente para o preparo da comida, e nem sempre sobrava para que a família tomasse banho ou lavasse a roupa.

"Muitas vezes a gente ia dormir com sede porque não tinha água pra beber à noite."
 
Na casa viviam os pais, três irmãos mais velhos de Neves e a avó. Como era mais nova de oito irmãos, Neves dormiu em uma rede no quarto dos pais desde que nasceu e até os 17 anos, quando se mudou para Brasília. Foi quando dormiu pela primeira vez em uma cama.

As letras no chão
 
A falta de escola ou de transporte até a escola não impediu que o pai deixasse de ensinar aos filhos o pouco do que ele conseguiu aprender.

"Todos os dias no final da tarde, quando chegava do trabalho, ele sentava no terreiro em casa, pegava um pedaço de pau e escrevia no chão. Aquelas letras, o abecedário, o alfabeto. Ele escrevia os nossos nomes, essas coisas", contou ela sobre o pai, um lavrador sem educação formal, mas que sabia ler e escrever.

Depois, porém, a lousa improvisada era apagada, e nenhum caderno estava disponível para as tarefas de repetição e memorização.

Essa foi a base com a qual Maria das Neves conseguiu juntar as letras e enxergar palavras e frases dentro do romance que Érico Veríssimo havia publicado mais de 40 anos antes.

Babá de dia, estudante à noite
 
No Centro-Oeste, a desterrense continuou trabalhando como babá, mas, apesar de alfabetizada por conta própria, não teve acesso a uma escola. Isso só aconteceu quando ela se mudou para São Paulo, na década de 1990, e arrumou um emprego como babá em uma família no Itaim Bibi, um bairro nobre na Zona Sul da Capital paulista.

Uma das tarefas do trabalho de Neves era levar e buscar as duas crianças das quais cuida no Colégio Pueri Domus todos os dias. Lá, ela descobriu a existência do Projeto Aprender, uma iniciativa criada em setembro de 2004 por alunos da escola, depois de uma pesquisa feita no entorno.

"Eles viram que existiam funcionários terceirizados da escola, da limpeza, da segurança, do restaurante, que não eram alfabetizados. Isso mexeu muito com aquele grupo, então eles começaram a estudar o assunto", explica o professor Giuliano Rossini, coordenador de projetos sociais do Pueri Domus.
 
Desde 2004, o Projeto Aprender do Colégio Pueri Domus treina alunos do ensino médio para darem aulas de alfabetização ao ensino médio para jovens e adultos — Foto: Divulgação/Colégio Pueri Domus

A primeira turma tinha cerca de 30 alunos e, em poucos meses, o curso passou a incorporar a comunidade do bairro, principalmente funcionários de edifícios residenciais e empresas da região que descobriram o curso pelo boca a boca.

"Foi o meu primeiro contato numa sala de aula como aluna", explicou ela, que relembra a incerteza do primeiro dia em que se viu em uma aula, e os professores tinham três décadas a menos que ela.

"Eu me senti um pouco perdida dentro da sala, achando que aqueles jovens não iam dar conta. Então o que eu estou fazendo aqui?", lembra Neves sobre o primeiro dia como estudante. "Mas na primeira aula eu já tinha certeza que era aquilo que eu queria pra minha vida e que eu não ia desistir."

A aluna que virou professora
 
Ela virou aluna em 2010 e, nos anos seguintes, passou a frequentar o Pueri Domus das 18h30 às 21h30, de segunda a quinta. Fez amizades com outros alunos, como a cozinheira Maria de Lurde. As duas fizeram o Enem 2014 no Centro de São Paulo. Segundo Neves, Lurde também já conseguiu seu certificado de conclusão do ensino médio.

Neves diz que, na sua idade, trabalhar durante o dia todo e estudar à noite não é fácil, mas os professores a impediram de desistir nos momentos mais difíceis. Tanto que, em seu discurso de formatura, ela fez questão de agradecer aos adolescentes que eram alunos e ex-alunos do colégio, e dedicaram suas noites ao ensino de adultos.

Em 2018, depois de consultar seu resultado no Encceja 2017 e descobrir que finalmente havia conseguido a pontuação suficiente para receber o diploma, Neves já aceitou um novo desafio: de ex-aluna, virou professora voluntária no Projeto Aprender.

"No início eu imaginava fazer um curso de gastronomia, mas no momento em que eu entrei na sala de aula para dar aula, eu decidi que não era gastronomia que estava nos meus planos, e sim a pedagogia", afirmou ela.
 
Em 8 de janeiro deste ano, ela recebeu o certificado emitido pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, o estado com o maior número de candidatos do Encceja.
Em fevereiro, Neves começou a faculdade de pedagogia na FMU.

O início acabou sendo adiado, já que a turma em que ela se inscreveu, no campus Itaim Bibi, perto de casa, foi fechada após ela efetuar a matrícula. Sem alternativa, ela decidiu que vai se deslocar à noite até o campus Liberdade da faculdade, no Centro de São Paulo, para cursar a carreira.

E, enquanto isso, se preparar mais uma vez para fazer o Enem. Dessa vez, o objetivo é conseguir uma bolsa de estudos do Prouni.