Lourival Bezerra viveu por mais de 50 anos como homem, pai, companheiro. Ao morrer, seu corpo passa pelo questionamento de não ser aceito com a identidade que assumiu

“Lourival viveu como homem e assim deve ser identificado”, diz pesquisador
Lourival Bezerra Sá, que morreu aos 78 anos em Campo Grande / Foto: Divulgação

Lourival Bezerra Sá viveu uma vida, ao que tudo indica, silenciosa. Foi casado, teve filhos, mas quando morreu, aos 78, criou um impasse. Descobriu-se que Lourival apresentava genitália feminina, o que para a maioria ainda define o que é ser homem ou mulher. Há 4 meses seu corpo está no Imol (Instituto de Medicina e Odontologia Legal), em Campo Grande, a espera de que uma identidade que Lourival deixou para trás venha à tona e ele possa ser enterrado.

O caso desafia as definições de gênero e mostra que a experiência de assumir uma identidade diferente daquela que lhe foi denominada é muito mais antiga do que o termo que hoje a define: transgênero. O gênero é uma construção social, não é ideologia, é ciência, diz o pesquisador e professor da UFMS Tiago Duque.

Ele esclarece que Lourival é a “prova” de que as questões de gênero não são “produções ideológicas que vão converter as crianças”. Pelo contrário, a experiência vivida por pessoas como ele deu origem ao estudo e é muito mais antiga do que se pensa.

Tiago é coordenador do Impróprias (Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade e Diferença) , autor do livro “Gêneros incríveis: um estudo sócio-antropológico sobre as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher” (Editora UFMS, 2017).

O livro é desenvolvido a partir de uma palavra ainda pouco conhecida: "passabilidade". O que isso significa? Tiago explica que o conceito define a imagem que os corpos trans passam para os outros. Ou seja, a imagem que passam de homens ou de mulheres.

Mesmo sem tecnologia avançada, sem hormônios, sem o aparato fármaco, Lourival escondia os seios com uma faixa, que o machucou durante toda a vida. “A faixa não deixa de ser um aparato que a cultura ofereceu, isso é interessante”, diz Tiago.

O Estado não acompanha a identidade – A questão do impasse do enterro de Lourival desumaniza sua existência. Para o pesquisador, no entanto, a existência “dribla as normas do Estado”.

“A primeira coisa é como o Estado não controla do jeito que acha que controla a vida das pessoas, como a história de vida dribla as normas mais rígidas de uma sociedade binária como a nossa, essa é a primeira surpresa. Tem tantas outras pessoas como ele que vão passar despercebidas, não é um caso isolado”.

“Mostra como aquilo que tem sido registrado da história dos homens trans tem feito a gente pensar o quanto precisa ser estudado, compreendido. A diferença é que esse personagem não está vivo para assumir uma identidade trans, mas a identidade pública dele era de homem”, enfatiza.

Homem trans? - Ponto chave da questão e alvo de muita polêmica, a identidade trans não é algo que deva ser recebido ou imposto, mas sim auto identificado. É o que comenta Tiago, explicando que o termo e o movimento organizado são muito novos na história. Ou seja, ninguém tem o direito de nomear Lourival como homem trans. Ele não está vivo para reivindicar o termo. O que não muda sua experiência: Lourival viveu como homem e é como homem que deve ser identificado.

“Porque ele não está vivo para se denominar, mas sem dúvida ele se via como homem, a questão não é se ele é trans, a questão é que ele é homem, isso é o mais importante, isso deveria nortear o estado a reconhecer a sua história e a sua identidade e não a colocá-lo como alguém desconhecido e indigente. A grande reivindicação de quem se sensibilizou é que ele precisa ser entendido como homem, parece uma certa violência com a biografia a gente achar que ele é mulher, ele é um homem, se percebeu e viveu como homem”.

Para o pesquisador “mora” aí a prova de que as questões de gênero são muito mais antigas e diversas do que os estudos e movimentos alcançam.

“O desconhecido não nos interessara, estamos preocupados com uma informação, com uma verdade que não nos diz respeito, considerando uma identidade pública masculina. É muito interessante porque ele enquanto uma experiência trans é anterior à pauta trans. Isso é muito recente, mesmo no movimento social, os homens trans se organizaram há menos de 15 anos, isso significa que em termos de movimento social há muito a se fazer, a gente tem um movimento organizado composto por uma juventude”, diz.

Para o professor, a juventude precisa ter acesso a histórias como a de Lourival: “para entender que muita gente antes já vivia assim, inclusive demarcado no corpo. No Lourival, a faixa causava ferimentos, é isso que o corpo está demonstrando, o quanto a experiência trans homem não é algo tão recente quanto as pessoas imaginam”.

Duas vidas, duas épocas, duas experiências – Anos de vida, experiência, acesso à informações e novas denominações separam Lourival de João Felipe Damico, 25 anos, que personifica a vivência de um homem trans jovem há 5 anos. As mudanças e o acesso à tecnologia, relata João, fazem toda a diferença. É assim que ele conta a própria experiência.

“Eu me descobri homem trans aos 20 anos, mas só comecei minha hormonização aos 21, justamente pela falta de informações. Eu não sabia o que deveria ser feito, onde faria, etc. Aos 23, com quase dois anos de tratamento hormonal, eu realizei a mastectomia (retirada total das mamas). Hoje tenho quase 5 anos de tratamento e em maio faz 3 anos que eu operei. Mas veja, desde o momento que me descobri trans até o dia que eu apliquei testosterona pela primeira vez, passou quase um ano. Hoje em dia isso não ocorre. A galera se descobre trans e as informações que precisam estão a um clique”, afirma.

João contou ser surpreendente que Lourival tenha conseguido viver no anonimato durante toda uma vida. “Nem as pessoas a sua volta sabiam de sua verdadeira identidade enquanto homem trans. Imagino o quão difícil e sofrido deve ter sido sua trajetória”, avalia.

Uma realidade distante, mas próxima pela empatia. “A realidade em que ele estava inserido é tão distante da minha e tão inimaginável pra mim que é impossível eu tentar me colocar em seu lugar e tentar imaginar suas dores. E torço para que o que me ocorreu de ruim não se repita com meninos que estão se descobrindo trans hoje. Penso que a tendência é a evolução em torno do tema, consequência das discussões e debates, coisa que não ocorria anos atrás”.

“A forma como ele viveu e como eu vivo, por exemplo, mostra como tudo pode ser pior ou melhor diante das informações ou a falta delas”, complementa.

Desafios para o estado, desafios para o estudo – Tiago Duque comenta que a noção identitária do Estado, exemplificada na burocracia do enterro, mostra que ele parte, sempre, de uma dúvida moral.

“Como a gente pode afirmar num estado de direito democrático e laico que ele vai ser enterrado como indigente, sendo que ele tem uma história, filhos, endereço fixo, ele tem uma história de imagem, ele tem redes, as pessoas sabem quem ele é”, questiona.

O professor comenta que a experiência de Lourival mostra a diversidade das vivências de gênero, já apontadas pelos estudos, que ultrapassam as próprias normas sociais. “Eu acho que mostra aquilo que os estudos de gênero e sexualidade já vêm apontando, as normas culturais não são 100% seguras naquilo que elas querem produzir, a experiência humana é muito mais diversificada que a nossa lei moral, jurídica e biológica”.

“Nós somos capazes de nos tornar aquilo que nós podemos ser, isso só corrobora aquilo que algumas instituições têm negado, que gênero é uma construção cultural. E além disso, esse poder da construção institui um corpo biológico, uma construção do corpo em uma performance diante da cultura. Ele conseguiu uma experiência de passabilidade por homem mesmo tendo útero, e isso mostra como somos capazes de construir um corpo. O corpo dele é um corpo masculino, do ponto de vista material inclusive, tinha uma imagem do corpo de homem”, avalia.

Além de levantar questões sobre a experiência trans, Tiago pontua que a vida de Lourival questiona os próprios padrões do que é ser homem em nossa sociedade.“Ele era ‘tão’ homem que ele tinha filhos, diz também sobre quais expectativas que o homem trans sofre. O que ele denuncia não é só algo sobre a identidade trans, mas sobre todas as identidade masculinas”.

É assim que a experiência molda a ciência, diz o pesquisador, trazendo novos desafios para o conhecimento das questões de gênero.

“Isso é uma prova viva de que o que estamos ensinando não é ideologia, é científico. Inclusive estão dizendo que isso ameaça as crianças, isso é a prova de que muito antes dessa polêmica toda as experiências já existiam, é a experiência que faz a teoria pensar sobre essa dinâmica”, finaliza.